“O servidor púbico que você paga mata seu filho, na rua ou dentro de casa. Todos os dias entram nas casas matando. Ainda temos que lidar com a pandemia, tem casa com 10 pessoas amontoadas e se sair para sentar na calçada, é morto. Vivemos uma situação terrível não só no Ceará, mas em todo País. Uma situação que destrói sonhos, deixa famílias adoecidas, mães com depressão. Basta de tanta morte na periferia, de só os pobres serem bandidos. Bandidos estão nos gabinetes, na presidência do País. É muito importante essa ajuda para levar nossa dor para a ONU, porque é uma dor que não passa. Não aguentamos mais.”
O depoimento é de Edna Carla, do grupo Mães do Curió (CE). Em novembro de 2015, onze pessoas foram assassinadas por policiais militares no bairro do mesmo nome em Fortaleza. Entre os mortos da chacina, o filho de Edna, Alef Sousa, de 17 anos, que tinha saído para jogar futebol. Segundo o Ministério Público do Ceará, os crimes foram motivados por vingança pela morte de um soldado, assassinado enquanto protegia a esposa de uma tentativa de assalto. Desde então, ela luta por justiça e contra a letalidade policial. Passados mais de quatro anos, 31 policiais militares ainda não foram a júri.
A história de Edna Carla foi contada nesta terça-feira (7), em uma reunião com familiares de vítimas da letalidade policial e presidiários, movimentos sociais e parlamentares, promovida pela presidência da Comissão de Direitos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM). Os depoimentos devem ser enviados, após preenchimento da documentação necessária, à Relatoria Especial para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias da ONU. Em junho, presidente e vices da CDHM junto com 123 instituições da sociedade civil e 14 parlamentares, já havia relatado à ONU números e exemplos de violações de direitos humanos da população negra.
“Hoje, estamos dando continuidade a essa ação, comprovando as denúncias, dando nome às vítimas e familiares. Vivemos uma situação crítica ainda mais no contexto da pandemia. Nosso acolhimento não é político, sentimos a mesma dor dessas famílias. Queremos o retorno concreto dos organismos internacionais”, afirma o deputado Helder Salomão (PT-ES), presidente da CDHM.
Vitor, o filho de Irone Santiago, que faz parte do grupo Mães da Maré, ficou paraplégico depois que uma bala atravessou a perna direita dele e atingiu a esquerda, que teve que ser amputada. Outro projétil atingiu a coluna do rapaz. “O carro em que Vitor estava foi fuzilado por um cabo do Exército durante o período de ocupação da Maré pelas Forças Armadas. O policial responsável pelos tiros não foi punido até hoje e continua trabalhando. Lutamos contra esse sistema, precisamos de apoio e justiça”, explica Irone.
Nívia Raposo, da Rede de Mães e Familiares de Vítimas da Violência de Estado na Baixada, teve o filho Rodrigues Tavares morto na porta de casa pelo que chama de “mistura de milícia com facção”. Ela destaca que “as mortes não são investigadas porque a polícia que mata é a que investiga”. “E não são casos isolados, tem em toda Baixada Fluminense, e agora com a pandemia tudo fica mais difícil. As milícias continuam invadindo e matando”, relata Nívia.
Patrícia de Oliveira, da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado e da Rede de Comunidade e Movimento Contra a Violência lembra que tramitam no Congresso projetos de lei que podem ajudar a mudar essa realidade. “Por exemplo, não existe o controle externo da polícia que, dessa forma, fica à vontade para matar. E tem projeto de lei para controlar isso, principalmente sobre o auto de resistência. E cadê o papel constitucional do Ministério Público, é obrigação e não um favor”, protesta Patrícia.
Já Ana Paula Oliveira, do Mães de Manguinhos (RJ), acusa as forças de segurança pública do Rio de Janeiro de promoverem a morte de moradores das favelas. O filho dela, Jonatan de Oliveira Lima, morreu com um tiro nas costas aos 19 anos de idade. “Os policiais envolvidos em homicídios são quase sempre os mesmos por causa da impunidade. Temos um governador que diz que ‘tem que mirar e atirar na cabecinha’. A segurança pública no Rio de Janeiro não é pautada para garantir a vida das pessoas, mas sim o extermínio e violência voltados para moradores de favelas e periferias. Muitas famílias são revitimizadas porque sofrem com mais de um assassinato dos seus jovens”, ressalta.
Ela reforça ainda a importância de uma perícia independente na apuração desse tipo de crime. “Os casos não são investigados, as famílias é que fazem o trabalho que deveria ser da polícia”, lamenta Ana Paula.
Violações dos Direitos Humanos em presídios
Nos presídios do Espírito Santo, de acordo com Gilmar Ferreira, ex-Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, a pandemia fez aumentar as violações dos direitos humanos por parte do Estado. “Grandes operações em morros e favelas. Recebemos todos os dias relatos duros dessa violência na Grande Vitória. São muitas prisões e grandes índices de contaminação pelo Covid-19 nos presídios. Não há criminalização do Estado e as medidas adotadas pelo judiciário estão muito longe do recomendado”. Ele informa que os homicídios aumentaram em 20% no Espírito Santo desde o início da pandemia.
“O Estado é o maior violador de direitos no país. Os presídios são masmorras e os presos são reféns. Se a família denuncia, o preso pode ser punido. É uma violência permanente, estruturante. Tenho um projeto de lei para responsabilizar os gestores dos presídios pela falta de condições, como comida e água. A lógica no Brasil é estender a pena ao familiar. A gente diz ninguém solta a mão de ninguém, mas tem tanta mão solta. Não existem balas perdidas no Brasil porque elas sempre acham os mesmos corpos, negros e pobres”, diz a deputada Erika Kokay (PT-DF), presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos.
A falta de responsabilização dos representantes dos governos estaduais, por exemplo, é apontada por Alessandra Felix, do Vozes do Socioeducativo e Prisional (CE). “Aqui, por qualquer coisa uma pessoa é presa. E dentro do presídio o nosso parente enfrenta massacres e surtos de doenças. Tudo acontece, mas somos ignorados. Tem que fiscalizar os fiscalizadores. Somos trabalhadores que lutamos por direitos humanos e isso também gera violência, perseguição. Ser familiar não é crime”, observa Alessandra.
Para Cris Ribeiro, da Rede Mães de Luta (MG), a letalidade policial é “escamoteada de várias formas e o racismo estrutural parece que autoriza essas mortes. Aqui em Belo Horizonte, a guarda municipal armada aumentou o número de mortes”.
“Aqui em Altamira não é diferente do resto do país. Perdemos os filhos para a violência e os idosos para a pandemia. Há 3 anos espero o resultado da investigação da morte do meu filho em 2017. Os casos são arquivados na delegacia, nem para o Ministério Público vão. Jovens são encarcerados de qualquer forma e as prisões aqui não recuperam ninguém”, testemunha Nágida Gomes, do grupo Mães do Xingu (PA).
“Meu filho Rafael da Silva Cunha foi assassinado em 2006, com 20 anos. Mas minha militância não começou com a morte dele, e sim quando ele tinha 15 anos e foi cumprir medidas socioeducativas em um estabelecimento no Rio de Janeiro por causa de um ato infracional”, conta Mônica Cunha, do Movimento Moleque. Para ela, “o Estatuto da Criança e Adolescente não existe, não é cumprido, porque vivemos em um país racista. Queremos uma educação antirracista, que ensine para o não assassinato dos jovens pobres e negros”.
Para Priscila Flores, do Coletivo de Familiares de Amigos e Amigas de Pessoas Privadas de liberdade do Amazonas, “a violência policial começa na abordagem e vai até a tortura dentro dos presídios. O Estado naturaliza a violência e criminaliza os familiares de presos junto à sociedade. O nosso crime é amar demais, não vou abandonar um familiar dentro de uma prisão”.
A coordenadora do Coletivo Mães de Maio da Leste (SP), Márcia Gazza, teve o filho torturado por policiais há 5 anos e até agora o caso está sem solução. “Nossos filhos acabam virando os criminosos e os verdadeiros estão soltos. A única ciosa que continua é a nossa dor. Estamos à mercê de um direito não concedido”, lamenta.
Galdene Santos, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (ES), denuncia a violência obstétrica sofrida por uma indígena. “Ela sofreu descolamento da placenta e foi a um centro de saúde, sofreu aborto, colocaram a placenta num saco plástico e mandaram ela de volta para casa, mas a menina estava com o coronavírus e deveria ter ficado hospitalizada”.
Projetos de Lei e PECs em tramitação no Congresso
Vários projetos de lei e Propostas de Emenda à Constituição (PECs), em tramitação no Congresso, tem como tema o enfrentamento a violência policial. O Projeto de Lei 4471/2012, dos deputados Paulo Teixeira (PT-SP), Fábio Trad (PSD/MS) e do ex-deputado Delegado Protógenes (PCdoB/SP), por exemplo, trata do fim dos “autos de resistência”. O projeto estabelece os procedimentos de perícia, exame de corpo de delito e outras ações nos casos em que o emprego da força resultar em morte ou lesão corporal.
Já o Projeto de Lei 9796/2018, oriundo da CPI do Assassinato de Jovens do Senado Federal, cria o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens, com duração de dez anos. Esse Projeto traz apensado o Projeto de Lei 2438/2015, da CPI da Câmara que apurou as Causas, Razões, Consequências, Custos Sociais e Econômicos da Violência, Morte e Desaparecimento de Jovens Negros e Pobres no Brasil.
Outras iniciativas são o PL 3503 /2004, do senador José Sarney (PMDB/AP), que prevê a aprovação do Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos; a PEC 117/2015, sobre Garantia de Autonomia para a Perícia Oficial de Natureza Criminal; o PL 7479/2014, da deputada Maria do Rosário (PT-RS), que trata do mesmo assunto; o PL 2441/2015, da CPI para apurar as Causas e Consequências da Violência de Jovens Negros e Pobres no Brasil, sobre aperfeiçoamento do controle externo das polícias pelo Ministério Público; a PEC 127/2015, do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) e Rosangela Gomes (PRB/RJ), que cria o Conselho Nacional de Polícia e a Ouvidoria de Polícia; o PL 4211/2008, da CPI sobre a Superlotação dos Presídios; o PL 10026/2018, de Ivan Valente(PSOL/SP) e o PL 796/2019, de Marcelo Freixo (PSOL/RJ), que institui diretrizes para a prestação de auxílio, proteção e assistência às vítimas de violência.
Essa pauta legislativa deve ser discutida com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ).
Para Francilene Gomes Fernandes, do Movimento de Mães de Maio e Familiares das Vítimas do Terrorismo do Estado (SP), “esses projetos são fundamentais e talvez esse seja esse o legado da pandemia, ligar pessoas com tanta coisa em comum, mesmo à distância”. Ela ainda defende que todos esses casos sejam denunciados a ONU. “Vamos encaminhar os termos de consentimento para denúncia junto à ONU e combater um crime que se repete ao longo dos anos que é o desaparecimento forçado de pessoas pelas forças armadas”, conclama. Francilene é irmã de uma vítima de violência policial.
A pesquisadora do Instituto de Estudos Religiosos (Iser), Natasha Neri, afirma que “essa mobilização para as perícias independentes é muito importante”.
Já Silva Souza, da Coalizão Negra por Direitos, defendeu a consolidação dessas denúncias para o posterior envio a ONU. “Precisamos consolidar todas as autorizações e entregar uma carta para a ONU com sugestões, como controle externo das polícias e a falta de perícia independente”, defende.
Os números
Documento encaminhado à ONU pela presidência da CDHM, em junho, mostra que, de acordo com a ONG Rio de Paz, 57 crianças foram mortas por balas perdidas no Rio de Janeiro entre 2007 e 2019. De maio de 2019 a maio de 2020, quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio de Janeiro. Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica que, no Brasil, só em 2018, ocorreram mais de 57 mil mortes violentas intencionais, das quais 75,5% das vítimas eram pessoas negras.
O Anuário afirma ainda que, também em 2018, 6.220 homicídios foram praticados por policiais, índice que cresce ano a ano. Desse total de homicídios, 11% das mortes violentas intencionais foram praticadas pela polícia naquele ano, que corresponde a 17 pessoas por dia. Entre 2017 e 2018 o crescimento foi de 19,6%, mesmo diante da redução dos homicídios, latrocínios e dos crimes contra o patrimônio.
A última foto
Maria do Carmo, do grupo Mães de Maio de Minas Gerais, mostra a foto do filho enforcado numa sala enquanto estava sob tutela do Estado. “Assim meu filho foi entregue para mim há seis anos. A polícia disse que foi suicídio. Porém, eles esquecem que cada mãe vira uma semente da luta por justiça pela morte do filho”, explica. O filho, Thiago Vinícius, era dependente químico e morreu no dia que completava 31 anos. Ele estava no Centro de Remanejamento do Sistema Prisional Gameleira. A foto lembra muito a que foi feita pelos agentes da ditadura militar brasileira, em 1975, quando ocorreu a morte do jornalista Vladimir Herzog. Ele foi fotografado, com uma corda em volta do pescoço, depois de ter sido torturado e morto. O tempo passou essa história a limpo. Vai passar outras também.
Também participaram do encontro assessores parlamentares e representantes dos grupos Mães de Manaus, Mães Mogianas; Mães de Brumado Salvador, Coletivo da Zona Leste Sapopemba, Mães de Maio do Nordeste, Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do Espírito Santo, Movimento Mães de Maio do Cerrado e da Justiça Global e Conectas Direitos Humanos.
Assessoria de Comunicação-CDHM
Foto: Fernando Bola/CDHM