Relatos fortes, pautados na sabedoria da ancestralidade e calcados no chão das aldeias marcaram a audiência pública promovida pelas Comissões de Direitos Humanos e Minorias, e de Defesa dos Direitos da Mulher. A atividade foi iniciativa das deputadas Erika Kokay (PT-DF) e Joenia Wapichana (Rede-RR) e teve como objetivo de debater as violações e violências contra mulheres indígenas.
Ao propor o debate, as deputadas argumentaram que, somente em agosto, duas meninas indígenas foram assassinadas. Daiane Griá, adolescente de 14 anos, da etnia Kaingang, foi morta na Terra Indígena Redentora, no noroeste do Rio Grande do Sul, e Raissa Silva Cabreiara, uma criança guarani kaiowá de 11 anos, foi morta na Reserva Indígena de Dourados, no sul do Mato Grosso do Sul. Nos dois casos, houve violência sexual.
Presente na audiência, Maria Leusa Munduruku, liderança indígena e coordenadora da associação Wakoborũn teve sua casa incendiada por garimpeiros, conforme denúncia feita à época. A residência de Maria Leusa fica localizada na aldeia Fazenda Tapajós, no município de Jacareacanga, sudoeste do Pará, região marcada por conflitos entre garimpeiros e indígenas.
Na sua fala emocionada, mas forte, Maria Leusa disse que a violência da qual foi vitima, não acontece só com ela. “São várias mulheres, somos todos vítimas”, denunciou.
“Fui obrigada a sair do território depois que atacaram minha casa com a bala, com fogo. Eu tinha que sair para dar essa segurança pra minha família, mas já voltei, a minha família voltou para dentro do território. Eu tinha que sair para denunciar tudo que tá acontecendo dentro da base e continuar dizendo que a gente não vai se calar”, relatou a líder indígena.
Maria Leusa disse ainda que no período de 7 a 11 de setembro ocorre o Acampamento das Mulheres Indígenas, em Brasília. Elas acompanham e lutam para derrubar a proposta de Bolsonaro que estabelece o “Marco Temporal” que se encontra em análise no Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao todo, segundo a coordenadora da associação Wakoborũn, são 4 mil mulheres indígenas na capital federal. “Todas as mulheres vão continuar na luta, sei que não é só eu, somos várias mulheres, não importa a etnia, não importa o lugar. A gente vai continuar lutando sim, porque é a vida dos nossos filhos que está em jogo, e dizer que desde que ele (Bolsonaro) entrou na Presidência ele declarou uma guerra com as mulheres, enquanto mulheres indígenas, a gente vai enfrentar essa guerra”, declarou Maria Leusa.
Bioma do Brasil
Ao se posicionar, Elisângela Baré da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), afirmou que as mulheres indígenas são “biomas desse Brasil”. Segundo ela, isso ocorre há mais 500 anos. “Nós, mulheres indígenas, estamos na luta e na resistência contra a violência doméstica, contra a invasão dos nossos territórios, e outras atrocidades que vem atingindo os povos originários, as mulheres principalmente, porque nós mulheres que carregamos no nosso seio, no nosso ventre, a vida humana”, destacou.
Elisângela ressaltou que as mulheres indígenas têm papel relevante e estratégico na conservação da biodiversidade e dos recursos naturais do País e explicou o tipo de desenvolvimento que defendem.
“Nossos territórios têm plano de gestão territorial e ambiental das terras indígenas, criado por nós, mulheres, jovens, crianças, lideranças, pensando como queremos gerir o nosso território, o nosso bem-viver, um bem-viver de qualidade. Queremos desenvolvimento, sim, mas de qualquer jeito não, por isso criamos protocolos de consulta para nossos territórios, para que possamos ter diálogo com o governo”, disse.
Reflorestar mentes
Elisângela afirmou que as mulheres lutam e trabalham para promover desenvolvimento dentro dos planos de gestão territorial que têm como premissa o bem-viver e de tirar o sustento dentro do próprio território indígena. Para ela, as leis produzidas pela Câmara “têm que ver com a mineração, com as madeireiros, com a invasão dos territórios indígenas”.
“Você como uma mulher, você não faz a segurança da sua família? Do bem-viver da sua família? Nós, mulheres indígenas, fazemos isso pelo coletivo e, hoje, nós estamos aqui na marcha com esse propósito de reflorestar a mente dos humanos, das humanas, da humanidade”, frisou Elisângela Baré.
Autora do requerimento para realização da audiência, a deputada Erika Kokay corroborou com os argumentos apresentados. “Querem falar pelos povos indígenas, querem dizer o que os povos indígenas precisam e qual é o projeto de desenvolvimento deles. Os povos indígenas têm o seu próprio projeto de desenvolvimento”, afirmou a deputada.
Violência vem do Congresso
Alessandra Munduruku da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) indagou: “O que seria de nós sem os territórios, sem os rios, sem as nossas florestas? Todos esses projetos que tão sendo aprovados aqui no Congresso está afetando as mulheres na base”, reclamou.
Ela considera que a violência contra as mulheres indígenas vem do próprio Congresso Nacional. “Qualquer pessoa que for falar da violência fale primeiro da violência que está acontecendo aqui no Congresso, que nos atinge na base, que está nos matando e atacando, e a gente vai continuar defendendo”, disse.
“Nós, mulheres, não estamos mais conseguindo dormir, não estamos mais conseguindo plantar, colher, estar dentro de nossas comunidades tranquilas. Nós estamos aqui sentadas, mais uma vez, todo o tempo temos que estar aqui, parecendo a nossa Casa. Mas nossa casa é lá, nosso território é lá. Quando afeta nosso direito de viver nos territórios, temos que sair, dar nossos gritos e dizer que estamos vivos, nós estamos brigando pelos nossos direitos”, completou.
Secretária do Movimento de Mulheres Indígenas de Roraima, Maria Betania Mota de Jesus, salientou que os povos indígenas de Roraima enfrentam invasões de garimpeiros, e as mulheres estão na linha de frente em defesa de seu território. “Já chega de ameaças, de retrocessos, de violações do nosso território e de discriminação às mulheres indígenas, que muitas vezes são vistas como antigamente eram vistas. A gente não quer isso, nós queremos nossa autonomia, nossa soberania”, destacou.
Projetos na Câmara
A procuradora da República Marcia Brandão Zollinger afirmou que vários projetos de lei em análise na Câmara são violadores de direitos dos povos indígenas, como o Projeto de Lei (PL 490/07), que trata da demarcação e exploração econômica de terras indígenas e foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça em junho. Para ela, o texto é inconstitucional.
“É um PL que incorpora a tese do Marco Temporal, violadora do artigo 231 da Constituição, uma tese que está em debate no Supremo Tribunal Federal, mas que temos a certeza que será derrotada. Esse PL também flexibiliza o usufruto exclusivo das terras indígenas, retirando dos povos indígenas o usufruto das suas riquezas. E também dá aos ocupantes das terras indígenas o direito de permanecer nas terras que não são suas até que haja o pagamento de indenização pelas benfeitorias. Além disso, esse PL admite o contato com povos em isolamento voluntário no caso de utilidade pública, e sabe-se lá o que é essa utilidade pública”, apontou.
Autonomia
A representante da ONU Mulheres Brasil Anastasia Divinskaya frisou que as mulheres indígenas precisam de autonomia, lembrando que a autodeterminação é direito fundamental dos povos indígenas. Elas devem, segundo ela, ter participação política e serem incluídas em órgãos decisórios para enfrentamento das questões que as atingem.
“As mulheres indígenas são vítimas de múltiplas atos de violência, abuso sexual, estupro, violência doméstica, assassinatos, desaparecimentos, tráfico humano, uso não consensual de suas imagens, tratadas como objetos exóticos pela mídia”, enumerou.
Os parlamentares Professora Rosa Neide (PT-MT) e Waldenor Pereira (PT-BA) também participaram da audiência.
Benildes Rodrigues, com Agência Câmara