Parlamentares do PT e vários representantes de entidades que representam categorias do serviço público rechaçaram hoje (30) a proposta de emenda à Constituição (PEC 32/2020) da Reforma Administrativa, encaminhada ao Congresso Nacional pelo governo de extrema direita Jair Bolsonaro. Em audiência pública da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara sobre a PEC, foram apontadas flagrantes inconstitucionalidades no texto da proposta e denunciado que a “pseudorreforma” proposta pelo governo tem como verdadeiro objetivo desmontar o serviço público para beneficiar o setor privado.
A deputada Erika Kokay (PT-DF) disse que a reforma proposta visa à captura do Estado pelo governante de plantão e possibilita que o papel estatal passe a ser secundário na prestação dos serviços públicos em relação à iniciativa privada.
“A função do Estado não é dar lucro, essa é a função da iniciativa privada. Portanto, a PEC submete a Constituição para que ela sirva ao mercado e não ao povo. Nossa Constituição tem um princípio fundante que é a dignidade humana e a construção lenta — e ainda inacabada — de um Estado de proteção social”, argumentou.
Apadrinhamento político
A parlamentar disse ainda que a proposta do governo é contraditória ao falar em meritocracia no serviço público, quando prevê a criação de vínculos de empregabilidade sem concurso púbico e possibilidade de ocupação de cargos técnicos e gerenciais via indicação política.
A deputada Maria do Rosário (PT-RS) criticou a PEC 32 especialmente pela ausência de debate com os servidores públicos. “Nós estamos tratando de uma reforma administrativa em que os servidores não foram consultados e um grupo de “iluminados” do ministério da Economia se sente à vontade para atacar e desrespeitar pessoas que dedicaram sua vida inteira à carreira pública e que poderiam estar na iniciativa privada até com salários maiores”, disse.
De acordo com Maria do Rosário, a lógica da reforma administrativa do governo Bolsonaro é culpar os servidores públicos pela crise. “Os servidores públicos são aqueles que sustentam o Estado mesmo quando há um desgoverno, como o atual. Convenhamos, nada aconteceria de positivo se não tivéssemos um quadro estável de servidores com a memória e organização das funções típicas de Estado”, ressaltou.
Dados mentirosos
Já o deputado Rui Falcão (PT-SP) lembrou que um representante do governo Bolsonaro – o secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Caio Mario Paes de Barros – chegou a divulgar dados falsos para justificar a reforma administrativa durante audiência pública na Câmara.
“Mais grave do que não apresentar dados, o representante do governo Caio Mario Paes de Andrade trouxe durante uma audiência pública aqui na CCJ dados mentirosos, desprezando a nossa capacidade de compreensão, ao mostrar a evolução de gastos com a folha dos servidores, dizendo que houve crescimento, desconsiderando a inflação do período, o que mostra um decréscimo nos gastos”, afirmou.
E o deputado Alencar Santana Braga (PT-SP) disse que a mera discussão da reforma administrativa em meio a uma pandemia, demonstra a total insensibilidade do governo Bolsonaro. “É uma covardia debater uma proposta dessa envergadura, que mexe no Estado brasileiro, em plena pandemia. Será que algum deputado ou deputada vai dizer na sua cidade que vai aprovar a reforma administrativa para o servidor do SUS que se arrisca neste momento de pandemia? Muitos vão fingir que nem existe esse debate na Câmara. Por isso deveríamos suspender de maneira imediata a discussão da PEC”, destacou.
PEC escandalosa
O presidente da Associação Nacional dos Advogados da União, Clóvis dos Santos Andrade, enumerou quatro pontos considerados escandalosos. O primeiro deles foi a proposta de criação de um vínculo de experiência antes da contratação efetiva do servidor público.
Segundo ele, essa “inovação” se parece com um programa de trainee, usado pela iniciativa privada para treinar jovens profissionais, o que levaria para dentro do Estado um vínculo por prazo determinado, inclusive para carreiras típicas de Estado. Segundo ele, esse tipo de contratação não é adequado às funções de um servidor público.
Pressão política contra gestores
“Imagine um delegado da Polícia Federal, um diplomata ou um advogado público que representa o Estado, atuando sem que tenha sido devidamente investido no cargo. Alguns desses candidatos será reprovado, e como ficarão os casos de imperícia ou erro grave cometidos por eles? Como poderão ser punidos se ainda estavam em período de experiência? Esse vínculo de experiência coloca a população como cobaia e expõe esses candidatos a todo tipo de pressão política de gestores, que podem ceder para buscar a efetivação no cargo”, comentou Andrade.
Segundo ele, outra inconstitucionalidade da reforma também pode ser apontada em relação ao fim da estabilidade do servidor público diante de decisão de órgão colegiado, entrando em colisão com o princípio constitucional da presunção da inocência (artigo 5º da Constituição Federal), que diz que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença.
O presidente da Associação Nacional dos Advogados da União disse ainda que também entram em confronto com a Constituição a possibilidade de o presidente da República extinguir – por decreto – órgãos públicos da administração pública autárquica e fundacional e ainda criar cargos de liderança e assessoramento, em substituição a cargos de confiança que por lei devem ser ocupados por servidores efetivos.
Falsos argumentos
Para o presidente do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União (Sindlegis), Alison Aparecido Martins de Souza, além das inconstitucionalidades também é falsa a suposta economia para os cofres públicos alegada pelo governo para justificar a aprovação da PEC.
“O Ministério da Economia diz que o País economizaria até R$ 300 bilhões em 10 anos com a reforma administrativa. É mentira, e dou um exemplo claro: Brumadinho, o maior acidente de trabalho do País, o segundo maior desastre ambiental deste século, com mais de 270 mortos”, lembrou o sindicalista, ao citar o rompimento de uma barragem em Minas Gerais, em 2019. Mais de 3 mil bombeiros foram deslocados de todo o País e trabalharam por 300 dias na área do desastre da barragem pertencente à mineradora Vale.
Segundo o presidente do Sindlegis, a tragédia ocorreu por conta da falta de fiscalização, fruto da ausência de investimentos e de cortes orçamentários na Agência Nacional de Mineração. “A Agência Nacional de Mineração, segundo auditoria do TCU, tinha apenas 8 técnicos para acompanhar cerca de 800 estruturas, das quais 425 eram barragens. Esse trabalho nos últimos anos era feito de forma remota, e a última visita de fiscais da agência havia ocorrido 3 anos antes da tragédia”, relatou.
Precarização do serviço público
Segundo ele, estudos da Fiocruz apontaram que, na época, o desastre provocou sobrecarga no sistema de saúde da região de Brumadinho, que precisou contratar mais 80 profissionais de saúde, ao custo de R$ 1,5 milhão por mês. “Isso sem falar nos bilionários custos ambientais, econômicos e sociais”, observou. Para Alisson de Souza, a suposta economia projetada pelo Ministério da Economia com a precarização do serviço público e desvalorização dos servidores, será paga “com vidas, com redução da qualidade dos serviços, além de desastres”.
O presidente da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Pedro Helena Pontual Machado, criticou a proposta da Reforma Administrativa por não apresentar diagnósticos ou mapeamentos dos problemas na administração pública que justifiquem as mudanças. “E as propostas apresentadas pelo governo são taxativas, com ampla abrangência, mas sem qualquer avaliação sobre seus impactos”, observou.
Ele salientou ainda que na exposição de motivos da PEC o governo diz que o Estado “custa muito e entrega pouco”, de acordo com a percepção do cidadão, “corroborada por indicadores diversos”. “Porém, não encontramos na exposição de motivos da PEC nenhum indicador nesse sentido”, afirmou. Para Pedro Machado, o problema do atual governo é que “tudo é considerado gasto, sem avaliar os resultados das despesas”.
Diplomatas
Ao corroborar os argumentos apresentados, o representante da Associação dos Diplomatas Brasileiros, Thiago Couto Carneiro, destacou que a entidade é favorável à modernização do Estado brasileiro “que permita ao País contar com profissionais bem-preparados, motivados e adequadamente remunerados”.
Héber Carvalho