O Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) formalizou nesta semana preocupação com o Projeto de Lei 490/2007, que dispõe sobre a demarcação de terras indígenas.
Jan Jarab, Representante Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em encontro presencial na terça-feira (23) com o deputado e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, Carlos Veras (PT/PE), entregou o documento que afirma que a proposta legislativa deveria ser revista pela Câmara dos Deputados, por poder resultar em retrocessos irreversíveis aos povos indígenas e ao meio ambiente.
Jarab apontou que o Legislativo possui papel fundamental em garantir a conformidade do governo com suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos e traduzi-las em legislação e políticas. O representante do ACNUDH reiterou ainda a preocupação com os recorrentes ataques sofridos pelos povos indígenas no Brasil e com o enfraquecimento de políticas que garantam sua proteção, destacando o avanço da mineração ilegal, o desmatamento, a poluição de rios, a paralisação da demarcação de terras e territórios e a desnutrição que ataca crianças.
Análise do PL
A análise do PL foi realizada por Deborah Duprat, renomada jurista brasileira e especialista na temática relacionada aos direitos dos povos indígenas e subprocuradora-geral da República aposentada, para o ACNUDH. O estudo aborda perspectivas dos povos indígenas no Brasil, regimes jurídicos e contextualização histórica, normas e jurisprudências internacionais e iniciativas legislativas em curso que violam o regime internacional dos direitos indígenas.
Duprat aponta que a Constituição de 1988 contém sete normas específicas sobre “terras tradicionalmente ocupadas por índios”, reconhecendo os direitos originários sobre as áreas e determinando que a sua demarcação se dê de acordo com os usos, costumes e tradições de cada grupo.
Violação ao regime internacional dos direitos indígenas
A jurista destaca a ausência de consulta aos povos indígenas no decorrer do processo legislativo da proposta e lembra que tanto a Convenção 169 da OIT quanto a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelecem a obrigatoriedade da consulta antes da edição de alguma medida legislativa que os afetem. “A discussão do PL 490 sem a participação dos povos indígenas afeta o seu direito mais fundamental: a autodeterminação”.
Ela destaca que não há registro, na tramitação do PL 490, de providências com o objetivo de realizar algum tipo de consulta aos povos indígenas. E que também não foi adotado pelo órgão indigenista brasileiro – a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) – qualquer mecanismo que permitisse chegar aos povos indígenas o conteúdo do debate a ser travado no âmbito do Poder Legislativo, de modo a fazer com que eles próprios se mobilizassem a respeito.
Direito originário
A advogada aponta que o PL 490 incorpora a chamada “tese do marco temporal”, estabelecida pelo Supremo Tribunal por ocasião do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, que considera terras tradicionalmente ocupadas as que estivessem em posse dos indígenas em 5 de outubro de 1988.
Ela ressaltou que ainda não há uma “tese do marco temporal” firmada pelo Supremo Tribunal Federal, que a questão é objeto do Recurso Extraordinário, e que o respectivo Relator, Ministro Edson Fachin, votou no sentido da inconstitucionalidade da estipulação de um “marco”. O julgamento encontra-se suspenso, sem data prevista para a sua retomada.
Duprat destacou também que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em relatório sobre a “Situação dos direitos humanos no Brasil”, afirmou que a tese do marco temporal desconsidera os inúmeros casos nos quais povos indígenas haviam sido violentamente expulsos dos territórios que ocupavam tradicionalmente e, apenas por essa razão, não o ocupavam em 1988.
A CIDH considera a tese como contrária às normas e padrões internacionais e interamericanos de direitos humanos, especialmente a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Agenda anti-índigena
O parecer entende que o PL 490, seus apensos e o substitutivo do Relator estão no contexto de uma agenda parlamentar anti-indígena. Ela lembrou que a CIDH recebeu informações de que, no final de 2018, havia mais de 100 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que objetivavam a restrição de direitos indígenas, especialmente em matéria de demarcação de terras.
O documento destaca especialmente os pontos mais obviamente contrários à jurisprudência internacional sobre os direitos indígenas, mas considera que a proposta é uma evidente tentativa de neutralizar o artigo 231 da Constituição brasileira, cujo conteúdo está totalmente alinhado aos parâmetros internacionais.
“O PL 490 insiste na forma mais colonial de exploração e controle do ‘outro’, mediante a sua negação, a ausência de reconhecimento de que seja produtor de saber, e não mero consumidor”, afirmou Duprat.
Fábia Pessoa/CDHM- Agência Câmara