Foto: Gustavo Bezerra
O artigo 171 do Código Penal Brasileiro tipifica o crime de estelionato: obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
No Congresso Nacional tramita a Proposta de Emenda à Constituição 171/93, que reduz a responsabilidade legal no Brasil dos atuais 18 para 16 anos. Número e definição melhores para essa proposta não há. Ela é, em tudo, da origem à data da aprovação de sua admissibilidade – 31 de março, quando se completou 51 anos do Golpe Militar que instaurou no Brasil um dos períodos mais traumáticos de nossa história –, um estelionato aos direitos civis da população brasileira, com enorme prejuízo às nossas crianças e aos nossos adolescentes. O número da PEC, o teor e o dia em que foi aprovada a sua admissibilidade nos lembram o que ela representa de fascismo e de retirada de direitos da nossa sociedade.
Em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte definiu em quais situações a Constituição Federal não poderia ser emendada (Artigo 60), e que não seriam sequer objeto de deliberação pelo Parlamento as propostas de emenda que objetivassem abolir (§ 4º): I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes e, IV – os direitos e garantias individuais. E é disso o que trata a PEC 171: ela retira direitos e garantias estabelecidos na Constituição para a proteção à infância e à juventude.
Quiseram os parlamentares constituintes garantir ao povo brasileiro direitos estabelecidos, que não seriam ameaçados por eventuais debates e divergências políticas, partidárias, sociais, religiosas, de opiniões ou de qualquer natureza. São compromissos que só podem ser alterados mediante a convocação de nova Assembleia Nacional Constituinte.
Os defensores da PEC 171 rasgam, pois, a Carta Magna brasileira – documento máximo que deveria reger os trabalhos no Congresso Nacional – e tentam empurrar goela abaixo da sociedade brasileira uma proposta inconstitucional, que dormitou por mais de duas décadas no Parlamento e foi despertada justamente quando temos uma das legislaturas mais conservadoras de toda a história política nacional.
Seus defensores tentam induzir a população – e o próprio Congresso – ao erro, admitindo uma proposta que sequer poderia estar em discussão por tratar de cláusula pétrea constitucional. E criam um ardil, uma falácia, tentando fazer crer que a redução da maioridade penal resultará em menos violência em nossa sociedade. Não resultará!
Ao reduzir a idade mínima de responsabilidade legal, o Brasil romperá, inclusive, tratados internacionais dos quais é signatário: é o caso da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, de 1989, que considera integrantes da infância os indivíduos até os 18 anos. A maioridade penal aos 18 anos vigora em mais de 150 países, e alguns que rebaixaram essa idade mínima discutem o retorno à idade anterior, ao constatar que a medida não implicou em redução dos índices de criminalidade.
Criou-se um mito de que a violência neste país é provocada pelos adolescentes, quando, na realidade, temos o contrário. A grande maioria das vítimas dos 50 mil assassinatos registrados no Brasil todos os anos são jovens, e jovens negros. Menos de 0,5% dos homicídios neste país são cometidos por adolescentes. Então, o problema da violência no Brasil não é trazido à sociedade pela participação de nossos jovens. Essa sociedade muita mais mata os adolescentes do que é morta por eles. E é preciso que a gente tenha absoluta clareza disso.
O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil pessoas aprisionadas, sem que esse elevado índice tenha resultado em mais segurança em nossas cidades. E a solução que o Parlamento apresenta para a sociedade é aumentar a população carcerária, ali lançando adolescentes que cometerem atos infracionais.
Temos um sistema penitenciário falido, onde 70% das pessoas que por ali passam reincidem na vida criminal. Sem ignorar toda a gama de problemas de nosso Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, que vão da superlotação à ausência de oficinas e atividades pedagógicas que contribuam efetivamente no processo de ressocialização, ainda assim o índice de reincidência é de 20% entre os que cumprem medidas socioeducativas: em algumas cidades chegam a cair para menos de 2% quando essas medidas são cumpridas em meio aberto.
Portanto, querem lançar jovens a partir dos 16 anos em um universo prisional que tem reincidência 50% maior do que o sistema hoje existente para responsabilizar e reintegrar harmoniosamente adolescentes que cometem infrações. E uso responsabilizar porque quem defende a redução da maioridade penal insiste em dizer que os adolescentes que cometem crimes neste país ficam impunes. Outra falácia. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece nada menos do que seis medidas socioeducativas, de acordo com a gravidade do ato cometido, para brasileiras e brasileiros em conflito com a lei a partir, não dos 16 ou dos 18, mas dos 12 anos de idade. São elas, advertência judicial, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade (por até seis meses), liberdade assistida (com acompanhamento mínimo de seis meses nos âmbitos familiar, escolar e comunitário), inserção em regime de semi-liberdade (com os jovens saindo das unidades para estudar e trabalhar, mas retornando à noite e passando os fins de semana com a família) e, por fim, internação (com privação de liberdade e segregação do convívio social e familiar por até três anos).
Em vez de tentar enganar a sociedade, com uma proposta que só poderia ser discutida em nova Assembleia Constituinte e que não contribuirá na construção de uma sociedade de paz, nosso Legislativo deveria se concentrar em impedir que a infância e a juventude deste país fossem roubadas, aliciadas para a violência. Deveria buscar soluções para fazermos valer a integralidade dos direitos previstos na nossa própria Constituição. O que os legisladores fazem é lançar uma cortina de fumaça para encobrir e disfarçar sua incompetência e negligência, em vez de estabelecer planos para a efetiva adoção de políticas públicas em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, além das devidas prestação de contas e punição dos responsáveis, caso essas políticas não sejam executadas com total prioridade.
Neste sentido, no mesmo dia em que a Câmara Federal admitiu a tramitação da PEC 171, apresentei projeto estabelecendo a obrigatoriedade de as gestoras e os gestores – federais, estaduais, municipais e do DF – apresentarem anexos às Leis de Diretrizes Orçamentárias anuais com seus planos para a infância e juventude. Nossa proposta inclui as regras para prestação de contas semestrais aos respectivos legislativos e estabelece, em caso de descumprimento, as mesmas sanções hoje previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, que vão de multas e ressarcimento aos cofres públicos, à inelegibilidade por até oito anos e prisão, em caso de condenação.
É o que defendemos, além da efetiva adoção das medidas socioeducativas já estabelecidas pelo ECA aos jovens em conflito com a lei. Pois entendemos que, por trás de toda infração cometida por um adolescente, há a mão invisível de um Estado incompetente e negligente com os direitos da infância e da juventude. Trabalharemos intensamente para que a tramitação dessa proposta avance no Parlamento, ao mesmo tempo em que nos unimos a mais de uma centena de entidades da sociedade civil que se posicionaram frontalmente contrários à redução da maioridade penal, por todos os motivos aqui já expostos.
A batalha contra a redução da maioridade penal se dará agora na Comissão Especial, formada na Câmara para debater a proposta, durante 40 sessões, antes que a PEC seja levada à Plenário. É tempo, pois, de intensa mobilização. Sem trabalhar nesta perspectiva, o Congresso brasileiro promoverá imenso retrocesso aos direitos civis e humanos, em rota de colisão ao resto do mundo.
* Erika Kokay é psicóloga, deputada federal pelo PT-DF, integrante da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e suplente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo se posicionado contrária à admissibilidade da PEC 171/93