Crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual podem virar alvo fácil de redes de prostituição e tráfico de drogas, mesmo as que estão abrigadas em instituições de proteção. De acordo com a promotora de Justiça de Defesa da Infância e da Juventude do Distrito Federal, Luisa de Marillac Xavier Passos, essa não é uma realidade só no DF, mas também de outras grandes cidades brasileiras. “Já são pessoas fragilizadas por causa de todo sofrimento que passaram e ficam à mercê de criminosos que aliciam em áreas próximas aos abrigos. E, por estarem fragilizadas e desprotegidas, veem mais essa exploração como uma oportunidade”, explicou.
Luisa participou, nesta terça-feira (28), da audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados que avaliou as políticas nacionais de enfrentamento ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. Para a promotora, a lei que criou o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente trouxe garantias e modos de agir em relação a denúncias de violência física, psicológica, sexual ou institucional. Porém, a rede de enfrentamento precisa ser fortalecida e ter mais alcance. “O depoimento especial da criança deve ser no máximo uma vez, hoje ela repete dezenas de vezes um momento doloroso. Já na escuta especializada, tanto a criança como a família enfrentam questionários intermináveis de diversos órgãos, e isso precisa mudar”, sugeriu.
A Lei 13.431/2017, que estabeleceu o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, encontra-se em fase de pactuação para ser implementada.
Números
Dentre as denúncias recebidas pelo disque 100 (Disque Denúncia) em 2018, mais de 17 mil foram de violência sexual envolvendo crianças e adolescentes. Destas, 13,4 mil foram de abuso sexual e 3,6 mil de exploração sexual. O abuso abrange violações de cunho sexual com meninos e meninas. Já o termo exploração é usado quando essa prática envolve algum ganho financeiro por parte do autor. Ainda de acordo com o Disque Denúncia, nos primeiros quatro meses deste ano houve 4.736 denúncias de violência sexual. A cada dia, esse serviço recebe quase 50 denúncias relatando crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes em todo o Brasil. O número é alto, mas pode ser maior, já que muitas das vítimas não registram a denúncia.
“São crianças e adolescentes que tiveram a infância e adolescência negadas. A gente precisa avançar, ir além do disque 100. Temos que aprofundar mecanismos de denúncia, romper com o manto da impunidade que está muito associada ao poder econômico e político”, avalia a deputada Erika Kokay (PT-DF), que solicitou a realização do debate.
O coordenador-geral Substituto de Saúde dos Adolescentes e Jovens do Ministério da Saúde, Luiz Cláudio Barcelos, destaca o serviço de atenção integral às pessoas em situação de violência sexual oferecido pelo SUS. “Desde a atenção básica até às de complexidade mais elevada, as maiores vítimas são as meninas. Também observamos que a família nem sempre é o ambiente 100% seguro, como deveria ser”. Barcelos informa que todas as ações desenvolvidas pelos ministérios são articuladas com outros órgãos do governo federal.
O Ministério do Turismo desenvolve um sistema de informações que envolve hotéis e restaurantes para qualificar os trabalhadores do setor e, dessa forma, criar um código de ética. “Queremos estabelecer regras de condutas para que os trabalhadores do setor denunciem e saibam agir em casos de exploração sexual. Nossa meta é atingir 11 mil estabelecimentos, de pequenos a grandes”, informa Gabrielle Andrade, do Ministério do Turismo.
Sanduíche, calça jeans ou crédito no celular
Amanda Ferreira, da Rede ECPAT Brasil, lembra que existe uma realidade muito além dos grandes centros, um tipo de exploração sexual que é silenciada, invisível e até naturalizada. A violência sofrida, na maioria das vezes, por meninas que vivem nas periferias, nos bairros ou em regiões remotas do País. “Elas enfrentam o tráfico para fins de exploração sexual. Muitas vezes, até pela própria necessidade acontecem trocas básicas por iogurte, sanduíche, calça jeans, crédito no celular”. Amanda ressalta que os avanços trazidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, não chegam a esses lugares. “Temos que entrar nas comunidades, ter políticas não só para os grandes centros, mas também para as pequenas comunidades, porque lá a lei é muito vazia. Meninas são colocadas em barcos e botes por 3 ou 4 reais”. Ela denuncia para o que é chamado de “gravidez na adolescência”. “Isso é estupro de vulnerável. Em muitos casos a menina de dez ou onze anos ‘assume’ se casar com o estuprador para que ele seja provedor de toda família, e isso dura semanas ou apenas dias”.
Karina Figueiredo afirma que o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Contra Criança e do Adolescente trouxe avanços e deve se tornar referência para as políticas públicas do setor. Ela faz parte do Comitê que elaborou o Plano. “Conseguimos alterações no Código Penal para responsabilizar quem pratica esses crimes. Agora, temos que pensar em estratégias para fortalecer o disque 100, com espaços de escuta especializada para crianças e também para quem pede ajuda. O Disque 100 não pode ficar à mercê de governos”. Ela também mostra preocupação com o consumo, cada vez maior e mais cedo, de pornografia nas redes sociais, com crianças e adolescentes vivendo a sexualidade através das tecnologias. “Violência sexual deixa marcas profundas. Há 23 anos trabalho como assistente social em CAPs e mais de 90% das mulheres que atendo sofreram abuso na infância e buscam no álcool e outras drogas uma forma de anestesiar as dores das suas histórias”, atesta Karina.
A deputada Maria do Rosário (PT-RS) sugeriu a criação de uma subcomissão para acompanhar as políticas para o setor e propor novos projetos de lei. “Se o executivo não faz, o Parlamento não vai fechar suas portas”.
Também foram convidados para o debate representantes do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que, no entanto, não compareceram.
Caso Aracely
A audiência pública da CDHM marca o “Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”, celebrado em 18 de maio. Esse dia foi escolhido pois, em 18 de maio de 1973, em Vitória (ES), a menina Aracely, de oito anos de idade, foi vítima de rapto e estupro. A menina foi torturada e morta por jovens de classe média alta. O crime ficou impune.
Assessoria de Comunicação-CDHM