O Brasil é um país laico desde a Constituição de 1891. Naquele ano deixou de haver uma religião oficial do Estado. Porém, a intolerância religiosa no Brasil aumenta a cada ano, principalmente contra as chamadas religiões de matriz africana, como mostram dados disponíveis sobre o assunto. São centenas de casos, inclusive homicídios, em quase todos os estados no Brasil. Somente neste ano, mais de 200 terreiros de matriz africana foram depredados e seus frequentadores ameaçados no estado do Rio de Janeiro.
“Choros, lágrimas, morte e desavenças. Nosso povo tem sofrido demais. A minha casa de umbanda foi derrubada em 2015 por um trator. Então fui atrás dos meus direitos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos me dá esse direito. De ser católico, evangélico, umbandista ou não ser nada. Podemos rasgar esse documento? Precisamos e queremos respeito. O povo de terreiro já está cansado de tanta perseguição. Não é mais perseguição religiosa, é racismo religioso”. O desabafo é de Adna Santos, a mãe baiana, da Subsecretaria de Políticas de Direitos Humanos e de Igualdade Racial do Distrito Federal. Ela participou de audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), na quarta-feira (27), sobre perseguições e violência contra povos e comunidades tradicionais de matriz africana.
Levantamento feito Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que recebe denúncias pelo Disque 100, mostra que o número de denúncias de discriminação religiosa contra terreiros e adeptos de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, chegou a 506, em 2018. Essas duas religiões têm o maior número de adeptos no Brasil.
Vera Chiodi, mãe de santo da Casa Luz de Yorimá, em Brasília, conta sobre a demolição do centro de umbanda dela.
“A discussão do cumprimento das leis não é nova. No Brasil as leis não são cumpridas nem respeitadas. Falta ampliação da consciência. A casa que presido foi constituía em 2003. Alugamos parte de um galpão de uma oficina mecânica na Asa Norte. Ali ficamos até 2009. Dia 12 de junho daquele ano, o então governador do DF, José Roberto Arruda, editou uma lei sobre instituições sociais e religiosas. Dez dias depois nossa casa foi derrubada. Acompanhei a demolição e vi o responsável avisar pelo telefone “governador, o centro de umbanda já foi pro chão”. Era o Estado descumprindo a Constituição. Seis anos depois ainda esperamos pela legalização da nova sede, que fica em uma área pública. Agora, o Governo do Distrito Federal quer R$ 5 milhões para vender o terreno. Até quando as pessoas vão se achar no direito de que são donas da verdade?”, questiona Vera Chioldi.
“A intolerância religiosa no Brasil vem crescendo anualmente, principalmente contra as chamadas religiões de matriz africana como comprovam alguns dados disponíveis sobre o assunto. São centenas de casos, inclusive homicídios, em quase todos os estados, num desrespeito flagrante da Constituição e da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Estado é laico, posso não concordar com as ideias de alguém, mas tenho que respeitá-las”, afirma Helder Salomão (PT-ES), presidente da CDHM.
Discriminação, inclusão e religião na TV
“As tradições africanas são um dos maiores patrimônios que temos. E essa diversidade é tratada como inferioridade, difamação e humilhação. O problema é tão grave que sequer temos uma noção dos seguidores das religiões de matriz africana. Quando o coletor do IBGE pergunta qual a religião, a pessoa diz qualquer coisa, que é católico, espírita, menos que é macumbeiro, porque tem medo de ser discriminado”, afirma Hédio Silva Junior, coordenador-executivo do Instituto de Defesa das Religiões Afro Brasileiras (Idafro).
“Mas vejam só, o próprio Censo informa que no Rio Grande do Sul, o estado mais branco do País, existem cerca de 70 mil terreiros de batuque. Só em Gravataí são 4 mil. Já fui em terreiros em toda Região Sul em que maioria é branca. Isso dá uma ideia de quão inclusiva é nossa religião”, continua Hédio.
Ele destaca também um estudo feito pelo Idafro. O levantamento diz que 21% do conteúdo veiculado na televisão brasileira é produzido por igrejas. Supera novelas, shows e jornalismo nas grades de programação.
“O problema não é ser programa religioso, mas esses programas atribuem à macumba todos os problemas do mundo. Do desmatamento da Amazônia ao aumento da violência, e isso faz com que a pessoa acredite que tacar fogo num terreiro é “do bem”. A cada 15 horas um terreiro é atacado no Brasil. O direito à liberdade não pode ser confundido com liberdade para difundir discurso de ódio. Em curto prazo teremos conflitos no País porque o Estado tem fomentado um ambiente de ódio e belicosidade”, disse Hédio.
Gestão implacável
Isabel Paredes, coordenadora-geral de Políticas para Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Terreiros e para Povos Ciganos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, garante que o governo tem feito a parte dele.
Isabel Paredes destaca: “Temos várias políticas contra a criminalidade e vimos a diminuição nos casos de homicídios e latrocínios. Nosso Sistema Nacional para enfrentar a discriminação está presente em 20 estados e 21 municípios. Além de dois conselhos formados por afrodescendentes. Temos uma gestão implacável na apuração das denúncias de violação de terreiros e já fomos a locais onde houve esse tipo de intolerância”.
A presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), Luciana Dytz, diz que “são resquícios ainda do período da Abolição. Na prática, o Estado brasileiro não tem êxito na proteção dos templos e dessas comunidades, e o racismo religioso é disfarçado de conflitos de direitos, como proteção de maio ambiente versus liberdade religiosa”.
Para o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), “essa violência é causada pelo fracasso das instituições e organizações em ter um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações”.
“Os comportamentos racistas não buscam só eliminar a presença de negros na nossa sociedade, mas negar qualquer participação das tradições africanas na história do País. Já no tempo do Império os jornais já registravam a perseguição aos terreiros de umbanda. Ministério Público e Congresso Nacional devem ter mais presença na luta contra essa intolerância”, sugere Walmir Damasceno, representante para América Latina do Centro Internacional das Civilizações Bantu.
“Nosso papel é promover a paz, o encontro, a fraternidade e a tolerância. Se uma religião não prove isso, é uma farsa”, conclui o presidente da CDHM, Helder Salomão.
Assessoria de Comunicação CDHM