A presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) realizou, nessa terça-feira (14), uma reunião de trabalho com sociedade civil, judiciário e parlamentares para discutir despejos e processos de reintegração de posse contra populações vulneráveis. O grupo debateu a situação de comunidades indígenas, quilombolas, famílias de agricultores acampados e assentadas do programa de reforma agrária. Também foram discutidos os despejos em áreas urbanas.
Na última quinta-feira (9), o especialista da ONU em direito à moradia adequada pediu que o Brasil suspenda todos os tipos de despejo enquanto durar a pandemia. Em comunicado à imprensa, Balakrishnan Rajagopal disse que “o Brasil tem o dever de proteger urgentemente todas as pessoas da ameaça da Covid-19, especialmente as comunidades em risco”.
“Temos problemas muito sérios. Assentamentos criados há 20 anos estão atualmente ameaçados de despejo. Nesse momento de pandemia, tirar uma família do lugar onde está é muito sério. O Estado brasileiro deveria compreender e barrar isso. Assentamentos e acampamentos no Pará, Rondônia e Goiás correm perigo”, alerta Elias D’angelo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).
O deputado Paulo Teixeira (PT-SP), da Frente Parlamentar da Reforma Urbana, denuncia que “a pandemia está servindo para que o governo federal atue para os piores interesses, como desmatamento, mineração em terras indígenas e despejos. A justiça está devolvendo as terras aos proprietários porque o Incra não paga as indenizações”. O parlamentar sugere uma mobilização para votação do projeto de lei (PL 1975/2020), da deputada Natália Bonavides (PT-RN), que suspende o “cumprimento de toda e qualquer medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em despejos, desocupações ou remoções forçadas, durante o estado de calamidade pública reconhecido em razão da Covid-19”.
“O Brasil caminha para ser o país com maiores índices de Covid-19. E isso tem a ver com a infeliz tradição brasileira de privilegiar a propriedade em detrimento da casa, da moradia, que significa segurança para as pessoas. Negar moradias agora pode representar a morte”, explica Ben Hur Cunha, Defensor Público da União.
O deputado Camilo Capiberibe, vice-presidente da CDHM, lembra que também tramita na Câmara o PL 735/2020, de vários deputados, que prevê “abono destinado a feirantes e agricultores familiares que se encontram em isolamento ou quarentena em razão da pandemia da Covid-19”.
A Irmã Jeane Bellini, da Comissão Pastoral da Terra, segue a mesma linha de pensamento. Para ela, que acompanha as questões ligadas a conflitos agrários há 45 anos, “desde a instalação do atual governo, já ficou muito claro o compromisso dele com os ruralistas, de facilitar as terras públicas para o capital. A suspensão de todos os processos de legalização no Incra, alegando falta de recursos ou tempo para análise, fez aumentar a violência. Tudo que estava encaminhado, como agrovilas com centros de saúde, acordos entre governos federal e estadual, tudo foi esquecido. Hoje, juízes decidem no vazio indo contra tudo que havia sido feito”.
“Temos recebido muitas demandas sobre processos de reintegração de posse de terras indígenas, quilombolas e de trabalhadores rurais. Os movimentos sociais vivem uma situação muito crítica, com ameaças de despejos de coletividades, inclusive de assentamentos da reforma agrária com terras reconhecidas. Isso em plena pandemia, contrariando todas as recomendações da OMS”, pontua Helder Salomão (PT-ES), presidente da CDHM.
Luciana Pivatto, da Terra de Direitos, ressalta que em São Paulo mais de duas mil pessoas foram despejadas de casa durante a pandemia. “É muito importante que o Congresso Nacional conclua a votação do PL que determina essa suspensão. Também estamos lançando a Campanha Despejo Zero, para mapear casos de remoção e a justiça atuar com maior precisão”.
A boiada & jagunços do século 21
Denildo Rodrigues, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), afirma que mais de 100 ordens de despejo de terras quilombolas estão espalhadas pelo país. Para ele, a demora na titulação definitiva dos territórios é a principal causa do problema. “Desde 2010 nenhum território está inteiramente nas mãos dos quilombolas. O setor que cuidaria de quilombolas no INCRA está reduzido, servidores foram remanejados para outras áreas. Um desmonte total para passar a boiada sobre nossos territórios. Por causa da pandemia já tivemos mais de 131 óbitos em território quilombola e mesmo assim os despejos avançam”.
“Passar a boiada” foi uma expressão usada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante reunião ministerial, para se referir a projetos do governo que prejudicariam populações vulneráveis e o meio ambiente, como o desmatamento, por exemplo.
Augusto César de Souza, Assessor Jurídico do Acampamento Arco Íris (MTL), lembra a história das 60 famílias acampadas na beira da MGT 461, em Minas Gerais. Os agricultores são seguidamente ameaçados com tiros por jagunços, para que deixem a área, que é motivo de conflito há 11 anos. “Precisamos do apoio do Ministério Público junto ao INCRA para resolver a situação. Queremos uma determinação do Conselho Nacional de Justiça para suspender efetivamente todos os processos de reintegração de posse, tanto físicos como eletrônicos, principalmente os coletivos. Temos que evitar uma tragédia”.
“É o agravamento de um processo secular da violência no campo, de disputa pela terra. E isso tem relação direta com a forma como o governo vem atuando em relação ao direito à terra. Não há mais reforma agrária e o que temos são os jagunços do século 21, as milícias” diz Nicinha Porto, da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). Ela pede definições sobre o domínio da terra. “Temos áreas já decretadas, com capacidade real de assentamento, com o processo paralisado, já com benfeitorias e plantações. Pedimos também que a Polícia Federal investigue as empresas de segurança privada, porque, sob o argumento de realizar segurança privada, há, muitas vezes, a atuação de milícias”.
Para a deputada Erika Kokay (PT-DF), presidente da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos, “políticas públicas não avançam, direitos à moradia e à terra são retirados. Aqui no DF se estima que aumentou três vezes o número de pessoas em situação de rua, isso é resultado da lógica patrimonialista que esmaga a condição humana. Uma violação de direito não vem sozinha, são violações em cadeia”.
“Infelizmente o presidente Jair Bolsonaro não reconhece e despreza a existência dos povos indígenas. Na FUNAI colocou um general que já atuou contra os indígenas. Durante a pandemia estão ainda mais esquecidos. A Constituição reconhece os direitos dos povos, mas como ela não é obedecida, tem que recorrer ao judiciário”, destaca Antônio Cerqueira do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Marina dos Santos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, lamenta a violência sofrida pelos pequenos agricultores nos assentamentos e acampamentos. “São ameaças, destruição de lavouras, assassinatos e criminalização dos nossos povos. Há falta de ação do principal órgão público responsável por essas áreas. Até mesmo antes da pandemia, o INCRA não dialogava com os trabalhadores em quase todos os estados, não cumpria com suas responsabilidades, acordos, pagamentos”. Ela denuncia processos de reintegração de posse de assentamentos já constituídos no Pará, Paraná, Mato Grosso do Sul, Alagoas, Rio de Janeiro e Goiás. “O poder público não leva em conta os direitos dos trabalhadores rurais. Um por cento de proprietários tem 46 por cento das terras do país”.
Para o procurador da República integrante do Grupo de Trabalho sobre Povos Indígenas e Ditadura, Júlio de Araújo, “esse tema não pode ser discutido sem pensarmos na desestruturação das políticas púbicas e aumento da insegurança jurídica, um cenário que se agravou nos últimos anos. A dificuldade de medição de conflitos também ajudou a criar um cenário de violência com toda força. Há uma ligação legitimada, através de votos, da alegação de que não há recursos para a reforma agrária com a falta de interesse de executar essa política. E isso cria um limbo”.
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Carlos Vilhena Coelho, subprocurador-geral da República e novo Procurador Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), afirma que “a reintegração de posse de terras rurais é um tema muito caro à nossa gestão, que será marcada pelo diálogo com movimentos sociais e instituições brasileiras e internacionais. Atinge indígenas, quilombolas, pequenos agricultores. Em relação às famílias de pequenos agricultores temos muita preocupação com a atuação do INCRA, por causa da integridade de todas essas famílias e dos defensores de direitos humanos. envolvidos. A demora para a emissão dos títulos de posse nos preocupa ainda mais. Tudo está no radar da PFDC. Seremos um aliado importante para a execução de políticas públicas”.
Encaminhamentos
Entre as sugestões levantadas pelo grupo nesta terça, estão um encontro entre a CDHM, Conselho Nacional de Direitos Humanos, PFDC e Incra para retomada de processos de terras onde estão povos tradicionais; mobilização pela aprovação do PL 1975/2020; intensificar a atuação nos estados do Executivo e Judiciário, para evitar despejos durante a pandemia e pedir informações à Polícia Federal sobre a fiscalização das empresas que prestam serviços de vigilância privada.
Também acompanharam o encontro Eliana Torelly, subprocuradora-geral da República e Coordenadora da 6ª CCR do Ministério Público Federal; Renan Sotto Mayor de Oliveira, Presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos; Carlos Veras (PT-PE), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Convivência com o Semiárido; Patrus Ananias (PT-MG), Secretário da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional e assessores de parlamentares.
Assessoria de Comunicação-CDHM