Depois de mais de sete horas de obstrução e com o voto contrário do PT, a Câmara aprovou o projeto de lei (PL 3292/20), que cria cota para o leite nacional que for comprado para a merenda escolar. O texto determina que 40% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) aos municípios e usados para a compra de leite devem ser destinados à aquisição do produto na forma líquida junto a produtores locais registrados no serviço de inspeção. O projeto também retira a prioridade de compra dos gêneros alimentícios de comunidades indígenas, assentamentos da reforma agrária e comunidades quilombolas.
Ao defender o voto contrário, a deputada Professora Rosa Neide (PT-MT) afirmou que há consenso na base da educação de que este projeto é extremamente prejudicial para os recursos destinados do PNAE para aquisição de alimentação escolar. “O que comprar é de autonomia de cada gestor, não pode ser uma imposição de cima para baixo. Eu estou chamando isso de intervenção da Câmara, do Parlamento brasileiro, na autonomia dos municípios”, argumentou.
A deputada citou que o PNAE existe há mais de 40 anos, um projeto relevante para a alimentação escolar dos estudantes, com autonomia para aos gestores lá na ponta. O dinheiro vai para a escola, cada município tem uma câmara de negócio, faz a sua licitação, e a escola vai na busca do melhor alimento, compra os 30% da agricultura familiar. “São eles quem define o que comprar, de acordo com a cultura local, de acordo com a cultura alimentar dos estudantes. Essa imposição de cota para o leite vai ter um impacto negativo na alimentação escolar”, reforçou a deputada, informando que o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação), a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), os gestores, os prefeitos e secretários são contrários ao projeto.
Rosa Neide defendeu ainda que as bacias leiteiras no Brasil sejam apoiadas, com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo, para que a Conab possa comprar leite. “Nós sabemos que hoje o recurso do PNAE para o ensino fundamental e para o ensino médio é de R$ 0,36 centavos, e para os que têm escola integral, escola do campo, um pouco mais. Isso é um valor muito pequeno se olharmos o cômputo individual, mas quando a licitação é feita no global, lá na base, faz-se milagre na compra conjunta, porque entende qual é a cultura alimentar daquela população”, enfatizou.
Autonomia dos municípios
Na avaliação do deputado Helder Salomão (PT-ES), o projeto é muito ruim porque desrespeita, tira a autonomia dos gestores municipais, além de desrespeita a realidade local. “Ao apresentar um projeto como esse, certamente não se leva em conta a realidade dos estudantes, dos professores, da comunidade local. Demonstra também um grande desrespeito à comunidade escolar. Esse projeto traz a mesma lógica daqueles que pensam o ser humano apenas como um CPF, apenas como números. Nós precisamos ver professores, alunos, comunidade escolar com o olhar de quem respeita as realidades diferentes”, defendeu.
A deputada Erika Kokay (PT-DF) também criticou a interferência na autonomia dos municípios e fere o poder de articulação da própria escola. “E aqui querem impor que, se a escola vier a comprar leite, que 40% seja de leite fluido. Mas não se fala em preço nem nas realidades regionais. E se a escola não tiver como armazenar esse leite fluido? Então, a escola não vai poder comprar leite? Ou seja, vão interferir na dieta alimentar, na condição de nutrição daqueles meninos e meninas que ali estão? Como é possível admitir que haja esse nível de imposição que pode representar o impedimento da escola de vir a consumir o leite, se ela não tiver como armazenar esse percentual de leite fluido, sem considerar as condições locais, a territorialidade?”, indagou.
Erika explicou que território não é só espaço geográfico. “Território é como se estabelecem as relações. E, aliás, alimentação diz respeito à cultura. E é por isso que descentralizar é tão importante. Por isso, esse projeto não deve prosperar. Ele é uma intervenção indevida nas escolas e nos municípios”, protestou.
Projeto destrói o PNAE
Na avaliação do deputado Padre João (PT-MG), o projeto destrói o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que é referencia para mais de 80 países. “O Conselho de Nutricionistas, os ministérios da Educação e da Agricultura e a Casa Civil também são contrários a esse projeto porque é o início do desmonte do PNAE, programa exitoso que além de garantir a merenda escolar ajuda a agricultura familiar”, alertou.
Padre João ressaltou que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo em diversidade da produção de alimentos, de verduras, legumes e frutas. “E nós avançamos muito na alimentação escolar. Nós temos dados que as crianças melhoraram o rendimento escolar, ganharam até estatura, ganharam qualidade de vida, saúde e grande rendimento. Então, nós não podemos, através de uma lei, nos intrometer na autonomia do município, do estado e do Conselho da Alimentação Escolar. É um absurdo!”, protestou.
O deputado disse que a riqueza do programa de alimentação escolar é ter produtos locais. “E nós não temos laticínio em todos os municípios. Nem todos vão poder produzir leite”, completou.
E o deputado Afonso Florence (PT-BA) afirmou que o projeto aprovado fere a Política Nacional de Alimentação Escolar. “Esse é um projeto burro, que desconhece inteiramente o que é política de alimentação escolar e que impõe um conteúdo nutricional como regra para o País, destinando um percentual da merenda escolar para leite líquido e retira a possibilidade de comunidades tradicionais, de agricultores familiares, de pescadoras, de pescadores ribeirinhos do Amazonas e do Brasil venderem os seus produtos. A pesca artesanal fornece cálcio, por meio da merenda escolar”, observou.
Texto aprovado
O projeto aprovado, de autoria do deputado Vitor Hugo (PSL-GO), ainda precisa ser apreciado pelo Senado. O texto dispensa a licitação para a compra do leite se os preços forem compatíveis com os do mercado local, atendidas as exigências de controle de qualidade.
Caso não haja leite líquido, a prefeitura poderá comprar leite em pó, contanto que não seja importado. E a cota mínima de 40% será dispensada se houver impossibilidade de emissão de nota fiscal; inviabilidade de fornecimento regular e constante; condições higiênico-sanitárias inadequadas; ou inexistência de laticínio nas proximidades da região ou produtores nacionais de leite em pó.
Agricultura familiar
Atualmente, a Lei 11.947/09, sobre o programa de merenda escolar, prevê o uso de um mínimo de 30% dos recursos da merenda escolar para a compra de gêneros alimentícios produzidos diretamente pela agricultura familiar ou empreendedor familiar rural, com prioridade para os assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas.
Vânia Rodrigues