Uma proposta que tramita em caráter de urgência no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, tem preocupado parlamentares do campo progressista e movimentos populares. O Projeto de Lei 10.431/2018, de autoria do Poder Executivo, torna possível o bloqueio de bens de pessoas e entidades investigadas ou acusadas de terrorismo.
Se aprovada, a norma valerá para todos os tipos de bens, desde valores e fundos até serviços, financeiros ou não. Na prática, a medida dificulta a operação bancária e atividades de diferentes naturezas de quem for enquadrado nesse tipo de crime.
A principal crítica levantada por deputados que se opõem à medida diz respeito ao conceito de “terrorismo”. O líder do PT na Câmara, Paulo Pimenta (RS), ressalta que o significado do termo ainda não é consenso no País e que, por isso, costuma ser utilizado pelas bancadas conservadoras como manobra política para enquadrar movimentos populares pacíficos – que têm como prática comum ocupar imóveis vazios ou terrenos improdutivos, por exemplo.
Por isso, a oposição entende o PL como uma “armadilha” para sedimentar o caminho que leva à criminalização oficial de entidades que desde já enfrentam uma ofensiva, embalada pela vitória de Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais deste ano.
“Todos nós sabemos que, no Brasil, não só esse tema não é pacífico, como o presidente eleito, em diversas oportunidades, tem afirmado a intenção de mudar a lei, ampliando não só o conceito como o alcance daquilo que, pra ele, seria considerado uma ação ou organização terrorista”, afirma Pimenta.
Em geral, os alvos de declarações recentes do líder do PSL têm sido o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Com atuação nacional, as duas organizações são referência na defesa de direitos e do patrimônio nacional.
Projeto – Além de tratar do bloqueio de bens, o PL 10.431/2018 prevê, em seu artigo 6º, que as sanções aplicadas a pessoas ou entidades consideradas terroristas podem incluir restrições à entrada ou à saída do território nacional. Também determina que podem ser impostos entraves à importação ou a exportação de bens.
Ainda segundo o texto do projeto, o bloqueio de bens poderá ser solicitado em três hipóteses: para executar resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) que tratam de terrorismo, incluindo o seu financiamento, e da proliferação de armas de destruição em massa; por meio de requerimento apresentado por autoridades brasileiras; ou por solicitação de autoridade estrangeira, quando ficar comprovado que o pedido atende a critérios da ONU para a política de combate ao terrorismo.
ONU – O argumento apresentado pelos defensores do projeto em relação ao primeiro ponto é de que o Brasil precisaria endurecer a legislação antiterrorismo para evitar possíveis penalidades determinadas pelo Grupo de Ação Financeira Internacional contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI).
A entidade, que atua de forma intergovernamental, formula padrões para a implementação de medidas que combatam esses tipos de crime e é usada como referência pelo Conselho de Segurança da ONU (CSNU). O texto do PL 10.431/2018 afirma que a proposta tem o objetivo de cumprir as determinações do órgão.
Segundo argumentam líderes governistas, uma eventual negligência em relação ao endurecimento da Lei Antiterrorismo poderia levar o Brasil a um rebaixamento da nota de risco fixada por agências internacionais, que servem de referência a investidores estrangeiros.
A classificação é usada para medir o risco de crédito concedido aos países e por isso avalia as chances de atraso de pagamento ou calote em operações financeiras no mercado global. Para conceder a nota, as agências consideram aspectos como situação fiscal e estabilidade econômica.
O criminalista Patrick Mariano, membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), contrapõe o argumento de que a não aprovação de uma medida como o PL 10.431 poderia rebaixar a nota do Brasil. Ele afirma que os países não são obrigados a cumprir todas as normativas do CSNU. O advogado cita como exemplo a Alemanha, que não segue à risca as diretrizes do GAFI e, apesar disso, tem conceito elevado nas agências internacionais de investimento.
A reportagem apurou que o país tem conceito “AAA”, por exemplo, na lista da agência Standard&Poor’s (S&P), que está entre as três maiores do mundo. A nota é a mais valorizada da escala de risco e por isso determinados fundos internacionais só investem em países com essa classificação.
“Na verdade, essa história do GAFI é uma falácia, não tem nenhuma comprovação. Tem vários países que não adotaram a própria tipificação do terrorismo e não sofreram sanção econômica nenhuma. O que determina sanção econômica não é a tipificação de uma lei, mas sim o contexto geopolítico da economia”, sublinha Mariano.
Justiça – As normas do CSNU também são alvo de polêmicas judiciais no cenário internacional. Em 2008, por exemplo, a Corte Europeia de Justiça anulou um ato da União Europeia relacionado ao chamado “caso Kadi”, no qual, com base no Conselho, um cidadão teve o nome incluído em uma lista de supostos terroristas. Por conta disso, teve os bens bloqueados. A Justiça afirmou que não havia justificativas legais para a inclusão do nome e que a sanção ignorava o devido processo legal.
O deputado Glauber Braga (Psol-RJ) aponta que os movimentos populares brasileiros podem correr risco semelhante em caso de aprovação do PL porque o texto da proposta não garante o direito de defesa antes do bloqueio dos bens de quem for acusado como terrorista.
O PL tem como um dos pontos o “auxílio direto judicial”, exposto no artigo 14 do texto, que prevê a aplicação de sanções dentro de 24 horas após a chegada do processo à Justiça, sem que seja necessária a oitiva do acusado.
No próximo governo, o Poder Executivo poderá, então, ter o caminho mais facilitado para comprometer a operação funcional de entidades e movimentos.
“Eles podem manobrar completamente. Se você, na condição de nação, de governo federal, indica pra ONU que determinado agente político ou líder é terrorista, ele vai entrar pra uma lista [internacional] e o movimento vai ter a perseguição em relação ao financiamento das suas atividades”, alerta o deputado.
Geopolítica – O critério que prevê que o pedido de bloqueio de bens pode ser feito por autoridades estrangeiras é também um dos pontos mais controversos do PL. O dispositivo levanta um debate sobre o cenário internacional que circunda a proposta.
Diante do avanço conservador em diferentes países e também dos interesses externos sobre o patrimônio brasileiro, Paulo Pimenta aponta que o projeto poderia deixar o país mais vulnerável a iniciativas internacionais que colaborem com a criminalização dos movimentos para deixar o caminho aberto para a venda de diferentes ativos.
Entre eles, estariam o pré-sal e a rede de geração e distribuição de energia controlada pela Eletrobras, hoje alvo de um processo de privatização. O deputado acrescenta que a importância econômica do Brasil, aliada a sua localização e à relevância econômica e global de áreas como a da Amazônia, coloca o país no centro das atenções de países como os Estados Unidos, cujo atual presidente, Donald Trump, tem afinidade política com Bolsonaro.
“Evidentemente que o Brasil é, do ponto de vista estratégico, fundamental pra eles. Nós não podemos permitir que o país, mais uma vez, se coloque de joelhos diante de interesses que não são nacionais”, defende o deputado.
Articulação política – Bancado pelo governo de Michel Temer (MDB), o PL 10.431/18 foi protocolado em junho deste ano, mas, em meio ao recesso parlamentar de julho e também do período eleitoral, em que o Legislativo desacelera as pautas, teve uma tramitação inicial silenciosa e ficou de fora dos holofotes.
A proposta veio à tona nas últimas semanas, depois de uma articulação conjunta envolvendo lideranças do governo que, no último dia 20, apresentaram um requerimento pedindo a apreciação do PL pelo plenário em regime de urgência.
A mobilização envolveu membros de partidos como MDB, PSDB, DEM, PP, Avante, PRB, Patriota e PSC, todos situados no espectro político da direita. Como a urgência foi aprovada, o PL passou a integrar a lista de votações do plenário da Casa, embora também tramite de forma paralela nas Comissões de Justiça e Cidadania (CCJ) e Finanças e Tributação (CFT).
Nos dois colegiados, a matéria ainda está sem relator e não passou por debate. Apesar disso, pode ser votada pelo plenário a qualquer momento.
Segundo apurações feitas pela reportagem, nos bastidores do mundo político, a pauta estaria sendo articulada diretamente no Congresso Nacional não só pelo governo Temer, mas também por interlocutores de Bolsonaro.
O nome do ex-juiz federal Sérgio Moro, já indicado pelo novo presidente como futuro ministro da Justiça, é citado nos bastidores da Câmara dos Deputados como um dos atores que estariam pressionando os parlamentares para a aprovação do PL 10.431.
Lideranças do governo também teriam pedido ao presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), prioridade para a pauta, que passou à frente até mesmo da proposta que prevê a autonomia do Banco Central, uma das matérias que estão na cartilha neoliberal de Temer.
Brasil de Fato – Edição PT na Câmara