No dia 5 de outubro, a Constituição Brasileira completa 30 anos. Fruto de amplo debate, a Carta Magna representou a refundação democrática no país após mais de 20 anos de ditadura civil-militar. A participação popular possibilitou conquistas importantes, especialmente ligadas aos direitos humanos e ao bem-estar social. Passados 30 anos, o texto constitucional já acumula mais de 100 alterações, o que impõe novos desafios à sociedade, já que muitas dessas alterações representaram perda de direitos.
“Instala-se, hoje, a Assembleia Nacional Constituinte”. A data é 1º de fevereiro de 1987 e essas foram as primeiras palavras do discurso do ministro José Carlos Moreira Alves, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que presidiu a sessão. No plenário, a voz do deputado federal José Genoino (PT) se ergueu, aos berros e sem microfone, para questionar a legitimidade de um ministro indicado pelo general-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) para conduzir o ato solene que daria início à refundação democrática do Brasil com a elaboração de um novo texto constitucional.
“Quem devia estar ali eram os presidentes dos partidos, porque o poder emana do povo para instalar a Constituinte, e ele [o ministro Moreira Alves] vinha da ditadura militar”, questionou, à época, Genoíno. Em seguida, Ulysses Guimarães (MDB), que presidiu a Assembleia Nacional Constituinte, fez chegar às mãos do colega um bilhete: “Manifestei-me ao ministro Moreira Alves favorável à sua manifestação”. Genoíno exibe com orgulho a moldura na qual está o papel amarelado, com o brasão da Câmara Federal, assinado por Guimarães. “Guardei até hoje”, disse, em entrevista ao Brasil de Fato.
“O Ulysses Guimarães já tensionava no sentido de, como um liberal autêntico, radicalizar a instalação da Constituinte. Nós fizemos esse protesto na solenidade de abertura, com embaixadores, ministros”, relatou o deputado. Ele reconhece o papel de liderança exercido pelo emedebista no sentido de aglutinar diferentes campos políticos da sociedade, o que contribuiu para dar contornos mais amplos à disputa eleitoral.
O episódio narrado por Genoíno revela algumas das tensões que fizeram parte do processo de instalação da Constituinte. A saída “lenta, gradual e segura” da ditadura militar, sem que houvesse ruptura, é uma delas. “A Constituinte se deu num contexto de agudização da crise que o país atravessava pós ditadura. A ditadura se enfraqueceu e foi derrotada pela via conservadora. A partir de 1983, foi uma transição pelo alto, como muitas vezes aconteceu no Brasil”, avaliou. Além das lembranças, Genoíno mantém grande acervo do período em uma biblioteca em casa.
Conquistas – Única integrante da atual Bancada do PT na Câmara a participar da Constituinte de 1988, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) relembrou o contexto político e social do País na elaboração da nova Carta Magna. “Elaboramos a nova Constituição vendo o Brasil por inteiro. Foi um momento de expectativa e de esperança de que a nova Constituição desse conta dos avanços de que o Brasil necessitava, logo após termos saído de uma ditadura”, disse.
A parlamentar reforçou que o desejo daquele momento era por mais direitos individuais e coletivos, bem como de redesenhar o papel do Estado e de garantir a independência dos poderes. “Todas as classes sociais e categorias de trabalhadores participaram daquele momento e conseguimos avançar em inúmeros conquistas mesmo enfrentando as forças de direita. Foi um momento de encontro do Brasil com ele mesmo”, destacou.
Entre os avanços importantes obtidos com a Constituição de 1988, Benedita da Silva ressaltou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a inclusão de novos segmentos da sociedade na seguridade social. Também lembrou que alguns desses direitos só vieram a ser concretizados durante os governos petistas de Lula e Dilma. Como exemplo, citou a regulamentação dos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores domésticos, ocorrido em 2015, durante o governo Dilma Rousseff.
“Infelizmente, desde o golpe de 2016, vários outros direitos têm sido violados, sejam eles sociais ou trabalhistas, ou de setores da sociedade como negros, quilombolas e indígenas. Apenas com um governo que se preocupa com a classe trabalhadora poderá reverter esses retrocessos”.
Resistência – Olívio Dutra, que também foi deputado pelo PT à época, lembra que a convocação da Assembleia Nacional Constituinte soberana e exclusiva era das demandas entre aqueles que lutavam contra a ditadura, além “da volta dos exilados, a libertação dos presos políticos e a anistia”, entre outras reivindicações. “Mas os generais foram fazendo as coisas ao seu modo com as forças que tinham ainda na sociedade e majoritariamente no Congresso. Por isso, fizemos uma anistia que não é anistia e mais tarde reduziram a convocação de uma Constituinte para um Congresso Constituinte”.
Dutra refere-se à Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985, que convocou os trabalhos, mas não garantiu que fossem eleitos representantes apenas para a elaboração do texto constitucional. Durante 20 meses, 559 parlamentares, sendo 72 senadores e 487 deputados federais participaram do processo, dividindo-se entre a elaboração da Constituição e os outros temas ordinários da Casa. Entre os senadores, 26 foram eleitos no pleito de 1982, quando não havia a proposição formal de uma Constituinte. Os demais senadores e deputados foram eleitos em 1986.
Além das contradições resultantes de um processo que tinha presença forte dos militares como foco de poder, o cenário político era formado ainda por um contexto de derrota na Campanha “Diretas Já”; pela morte de Tancredo Neves, que havia sido eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral como uma mediação diante da não realização de eleições diretas; e pela frustração com o Plano Cruzado do governo de José Sarney. “O Congresso Constituinte acabou se transformando numa espécie de caudal de saída política para o País sair da ditadura e ter nova Constituição”, apontou Genoíno.
O deputado avalia que, embora a conjuntura refletisse certo desgaste pelas derrotas recentes do campo popular democrático, a Constituinte aglutinou diferentes forças e, pelas ferramentas do próprio processo, se fez com participação da sociedade. “O Ulysses Guimarães tinha uma visão correta. Ele dizia o seguinte: ‘o Poder Executivo está em frangalhos, o Poder Judiciário legitimou a ditadura. Traz tudo aqui pra dentro’. O índio se pintava e ia falar no plenário. O banqueiro, a UDR [União Democrática Ruralista], a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo], as mulheres, os torturados, os quilombolas, tudo, que eu acho que é um processo interessante”, apontou Genoíno.
Para a pesquisadora Caroline Bauer, professora do departamento de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a vivência anterior com o autoritarismo é uma especificidade deste momento histórico da Constituinte. “Aquilo que estava latente aparece com força, que as pessoas tenham a sua voz, seus desejos ouvidos. Isso vinha desde as ‘Diretas Já’, ainda que a campanha tenha sido derrotada, não significou uma derrota no sentido da rearticulação da população, dos movimentos sociais e das demandas em relação ao Estado que vem ser corroborado em todo esse processo de participação na Constituinte e depois com as eleições diretas para presidente em 1989”, avaliou.
PT na Câmara com Brasil de Fato