Volta da fome é resultado do desmonte das políticas públicas no País

Insegurança alimentar atinge mais de 100 milhões de brasileiros. Foto: Marcello Casal/Agência Brasil

Especialistas e parlamentares que participaram nesta terça-feira (5), da Comissão Geral da Câmara que tratou do retorno da fome ao Brasil, avaliaram que a fome e a insegurança alimentar que batem à porta de grande parcela da população, em especial dos mais pobres, não é ocasionada apenas com o advento da pandemia de Covid-19. A desigualdade social, a concentração de riqueza, o desemprego, a ausência de políticas de Estado são apontados como mazelas responsáveis pelo atual quadro caótico pelo qual passa o País.

“A pandemia não é a causa da fome hoje. Se olharmos os dados do IBGE de 2017, nós já tínhamos o Brasil de volta ao mapa da fome. Então, segundo o IBGE, conforme os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017 e 2018, o Brasil já tinha voltado ao mapa da fome muito antes da pandemia”, esclareceu a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello.

A ex-ministra citou dados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil, estatísticas do governo federal, as quais mostram que, em 2019, já durante o governo Bolsonaro e antes da pandemia sequer ter aparecido na China, “já tínhamos 47% dos lares brasileiros que têm crianças com menos de 5 anos de idade em insegurança alimentar, ou seja, não se alimentavam adequadamente, não comiam proteínas e vitaminas de forma adequada e suficiente, e uma parte importante delas não tinha alimento suficiente”.

Segundo Tereza Campello, essa situação projeta consequências estruturais gravíssimas para o Brasil. “Não é um problema de hoje. É um problema de hoje e é um problema do futuro”, antecipou.

A economista concorda que a pandemia, de fato, agrava esse quadro. Segundo ela, isso ocorre porque o vírus alcança o Brasil no momento em que as políticas públicas já tinham sido desorganizadas. “Em grande parte, nós tivemos um desmonte das políticas públicas, como o Programa Cisternas e o Programa de Aquisição de Alimentos, que não foram extintos, mas agonizam hoje no Brasil, assim como o salário mínimo parou de ser valorizado, a destruição e o desmonte da CLT com impactos generalizados na renda dos brasileiros, o desmonte do SUAS”, elencou.

Para a ex-ministra, a volta do Brasil ao mapa da fome é resultado de um conjunto de situações de desmonte de políticas públicas que agravou muito esse quadro. “Não é a pandemia que agrava o quadro, é a desproteção social, a desorganização das políticas públicas, que nos impede de construir uma agenda que, mesmo com a pandemia, pudesse proteger os brasileiros”, reiterou Tereza Campello.

O quadro alarmante, segundo a ex-ministra, tende a piorar. Ela disse que, hoje, os números giram em torno de 44 milhões de brasileiros que não comem o suficiente diariamente, conforme apontava o Relatório VIGISAN em dezembro de 2020.

“Imagino que hoje estamos com mais de 55 milhões de brasileiros que não comem o suficiente. Isso significa mais do que uma Argentina que não se alimenta, e não só não se alimenta de forma adequada, mas não tem alimento suficiente ao longo do dia. Uma parcela já está numa situação de insegurança alimentar gravíssima”, denunciou.

“Eu gostaria de infelizmente aproveitar o meu tempo para alertar os nossos parlamentares, senhores e senhoras, que, na minha avaliação, esse quadro tende a piorar muito ainda, e isso é assustador”, alertou Campello.

Ex-ministra Tereza Campello participou da Comissão

Os milionários da Covid

A diretora técnica adjunta do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Patrícia Pelatieri, partilha da mesma opinião. “Primeiro, quero reforçar que a pandemia não é a causa, mas ela aprofunda essas desigualdades, aprofunda a desigualdade principalmente de segmentos mais vulneráveis da população”, afirmou a economista.

Patrícia Pelatieri chamou a atenção também para outra ponta da fome, da miséria, que é a questão da ponta da pirâmide. Ela citou que de um lado houve o aumento da fome, de outro, houve a concentração da riqueza. “Nesse período, 22 brasileiros entraram ou retornaram à lista de pessoas com pelo menos 1 bilhão de dólares em patrimônio, segundo a revista Forbes”.

Segundo a representante do Dieese, no primeiro trimestre de 2021, depois de um ano de pandemia, o lucro líquido de 262 empresas somou R$ 83 bilhões, um valor muito maior do que o de 2018, já descontando a inflação. “O lucro dos bancos, embora tenha caído em 2020, em comparação a 2019, atingiu R$ 79 bilhões”, esclareceu.

“Para nós termos uma dimensão disso, o gasto com auxílio emergencial, que salvou não só milhares de pessoas mas também a economia do País de uma queda ainda mais brutal, ficou perto do valor de R$ 290 milhões. Isso nos dá uma ideia da dimensão dessa desigualdade”, alertou.

Na mesma linha, o professor de Desenvolvimento Agroindustrial e Política Agrícola pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), José Giacomo Baccarin, acrescentou que o Brasil conseguiu, com o auxílio emergencial, mostrar que rapidamente se combate a pobreza.

“Quando o auxílio emergencial estava a plena carga — entre março e agosto do ano passado, com R$ 600 e com R$ 1.200 -, a extrema pobreza no Brasil caiu para um terço. E bastou o auxílio emergencial deixar de ser pleno e ter descontinuidade no começo deste ano que a pobreza aumentou”, revelou.
Presença do Estado

Para a diretora do Dieese nenhuma das questões colocadas se resolvem sem a presença do Estado. “Eu quero dizer que não há solução para a fome ou para o desemprego, para todos aqueles indicadores que aqui foram colocados, sem a presença do Estado. Então, essa política de redução do Estado — e vocês estão aí debatendo a questão da Reforma Administrativa, que é disso que trata — não é a solução”, apontou.

De acordo com Patrícia Pelatieri não será a iniciativa privada que vai dar conta de solucionar esses problemas tão graves do País. “E não haverá solução também se a ponta da pirâmide, esses super-ricos, não contribuir para pagar essa conta”, sentenciou.

Fome não é acidente

Em seu discurso, o líder da Bancada do Partido dos Trabalhadores na Câmara, deputado Elvino Bohn Gass (RS), foi enfático em afirmar que o tema da fome “não é um acidente”. “As pessoas passam fome não é por acidente. Passar fome é uma consequência de uma opção política de governo. E é bom que se registre isso neste momento, porque, hoje, o Bolsonaro tem uma opção para aumentar o fosso de desigualdade entre ricos e pobres. Os números estão aí para confirmar isso”, criticou.

Líder Bohn Gass: “Passar fome é uma consequência de uma opção política de governo”

Ilhas e paraísos fiscais

O líder petista lembrou que nos governos de Lula e Dilma existia um conjunto de políticas públicas que tiraram o Brasil do Mapa da Fome. Agora, segundo o deputado, o País está voltando a esse quadro caótico, “por causa da opção política do governo Bolsonaro e do Guedes, que preferem, sim, ilhas e paraísos fiscais, com offshores, com altas lucratividades, com o dólar supervalorizado e o real desvalorizado, o que faz com que o povo esteja na condição em que está”. “Isso é debater o tema da fome”, enfatizou.

A deputada Erika Kokay (PT-DF) também criticou o descaso do governo e o escândalo envolvendo o ministro da Economia, Paulo Guedes. “Nós estamos vivenciando um Brasil que tem um ministro da Economia que lucrou, nesses mil dias de Governo, R$ 16 mil por dia! E que ali estabeleceu um ferimento e um ataque ao código de conduta, que diz que pessoas que ocupam funções relevantes não podem fazer aplicações em investimentos que dependem de ações governamentais”, denunciou.

O deputado Leonardo Monteiro (PT-MG) tem o mesmo entendimento. “Ele [Paulo Guedes], que é ministro, ele, que exerce uma função pública, teria que estar sujeito ao código de conduta de ética pública”, argumentou.

Vai ter que explicar

“Por isso, aprovamos hoje, aqui em Brasília, na Comissão de Trabalho, a convocação do Paulo Guedes, para ele poder justificar o que está fazendo com este País. Ele está se enriquecendo, contribuindo para outros ministros também se enriquecerem, para o presidente do Banco Central enriquecer e, enquanto isso, a população está empobrecendo e a fome aumentando”, informou Leonardo Monteiro.

Flagelo social

Ao se pronunciar, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) disse que o Brasil vive um “flagelo social”. Ela é da mesma opinião que quando a pandemia chegou ao Brasil, a situação de fome já estava estabelecida. A parlamentar ainda lembrou que uma das primeiras ações do governo de Michel Temer e do governo Bolsonaro foi desmontar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “Esse foi o símbolo de que nós voltaríamos às circunstâncias da fome crônica no Brasil”, disse.

“Como pode uma Nação que, há cerca de 7 anos estava fora do mapa da fome ter tão rapidamente visto a degradação de políticas sociais e observar que brasileiros e brasileiras, em sua maioria, 130 milhões de brasileiros, vivem em insegurança alimentar? Como é possível tão rapidamente a destruição de políticas públicas que garantiram o básico, e o socialmente estabelecido, justamente o direito à alimentação?”, indagou.

Maria do Rosário lembrou que o Brasil rumava para a segurança alimentar e a soberania também. “A dimensão nutricional era a nossa preocupação. No entanto, nos dias de hoje vivemos o flagelo da fome e da pandemia”, lamentou.

Fome como estratégia

Da tribuna virtual, o deputado Valmir Assunção (PT-BA) afirmou que a fome não é um fenômeno da natureza, uma incapacidade do cidadão ou da cidadã, ou falta de sorte. “A fome, a pobreza e a miséria fazem parte de uma estratégia daqueles e daquelas que governam o País”.
Segundo o deputado, o Brasil volta à década de 80, quando a fome e a pobreza eram muito grandes, as pessoas catavam alimentos nos lixões para matarem a fome. Essa realidade, explicou o parlamentar, foi alterada no período do governo do presidente Lula.

“E como é que foi mudada essa realidade? Gerou-se mais de 20 milhões de empregos, valorizou-se o salário mínimo, fortaleceu-se a agricultura familiar, que produz 70% do alimento que chega à mesa de cada cidadão e cidadã — o valor de R$ 30 bilhões foi o crédito estabelecido na agricultura familiar —, criou-se o Bolsa Família, fortaleceu-se os conselhos, ou seja, a participação da sociedade civil, e a parceria com os municípios, respeitou-se o pacto federativo, fazendo com que isso tirasse o Brasil do mapa da fome”, demonstrou Valmir Assunção.

Em sua fala, o deputado Zé Neto (PT-BA) também lançou o questionamento sobre quem ganha com a fome e a miséria no País. “De um lado, temos a miséria, a fome, pessoas com uma dificuldade de vida absurda. No Estado que mais produz carne, as pessoas estão comendo vísceras e estão em busca de ossos. E nós perguntamos: a quem a fome beneficia? Porque ela beneficia alguém!”, opinou.

A fome e o golpe

Para o deputado Padre João (PT-MG), a fome volta à cena juntamente com o golpe aplicado na presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016. Na verdade, a fome no Brasil teve um momento importante aqui nesta Casa no dia 17 de abril de 2016, quando demos uma guinada com a retirada da presidenta Dilma, mudamos toda a política de segurança alimentar deste País”, criticou.

O parlamentar mineiro disse que depois do golpe houve o desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Programa Água para Todos, da extinção do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional sustentável, do desmonte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. “Onde estão as Câmaras Interministeriais de Segurança Alimentar e Nutricional, que formulavam com o povo através das conferências de segurança alimentar e nutricional?”, questionou.

“Nosso povo passa sede, fome e sede, são milhões de brasileiros. Até o caminhão do Exército para carregar o caminhão-pipa está sendo retirado, porque não há programas de captação de água de chuva. A solução é reestruturar os programas, retomar os programas”, defendeu.

Fundo do poço

O deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) sentenciou: “Chegamos ao fundo do poço. O acúmulo de erros, a partir do golpe na presidenta Dilma, levou este País a produzir menos de uma dezena de bilionários e reproduzir milhões de superpobres”.

Na avaliação de Reginaldo Lopes, a fome, a miséria e a extrema pobreza têm origem em vários fatores. Segundo ele, a não garantia do reajuste do salário mínimo com ganho real, descontrole na política de preços, em especial na política de alimentos, têm corroído o poder de compra do povo brasileiro, o desemprego, a ausência de uma política adequada de transferência de renda, de proteção social, para os mais pobres, são elementos preponderantes para a situação pela qual passa o País.
“O somatório de todo esse desgoverno é a volta do Brasil para o Mapa da Fome. Quase 30 milhões de brasileiros voltaram para o Mapa da Fome!”, frisou.

“Mais de 100 milhões de brasileiros e brasileiras estão com insegurança alimentar. E o ministro da Economia que, com a especulação, investimento em paraísos fiscais, acumula, a cada dia, 14 mil dólares de lucro na especulação, obriga o povo brasileiro a correr atrás de caminhão de osso no País que mais exporta alimentos no planeta Terra. É um governo desumano! É um governo genocida! É um governo da necropolítica”, criticou.

Fora, Bolsonaro

“A única saída para este País, lamentavelmente, é o Fora, Bolsonaro! Não há outro caminho para nós encontrarmos a paz, a soberania nacional e um projeto de Nação, com um ministro da Fazenda que tem contas em paraísos fiscais, com o presidente do Banco Central que tem contas em paraísos fiscais, e com um governo incapaz, que nunca entendeu de economia e não teve empatia pelo povo”, afirmou Reginaldo Lopes.

O deputado Pedro Uczai (PT-SC) lamentou o retorno da temática sobre a fome retornar à ordem do dia do Parlamento. Para o deputado a grande pergunta que fica é se a política econômica do governo Temer e do governo Bolsonaro aumenta a desigualdade social e concentra renda e riqueza ou distribui a renda e a riqueza.

Para o parlamentar catarinense, está claro que “não há só pobreza, empobrecimento, desemprego, miséria e fome”. Para ele, há concentração de renda e de riqueza no País.
“Esta é a decisão da política econômica. Esta é a decisão do governo Bolsonaro. Portanto, é ele o responsável pelo aumento da miséria e da fome neste País. Portanto, esta Comissão Geral denuncia o nome do responsável por trazer de volta o Brasil ao Mapa da Fome”, afirmou.

19 milhões de famintos

O deputado José Ricardo (PT-AM) lembrou que Brasil já tinha saído do mapa da fome nos governos petistas. “Agora, no desgoverno de Bolsonaro, nós temos milhões de famílias passando fome, lamentavelmente. São 19 milhões de famílias, de pessoas que estão passando fome. Esse é um dado oficial. E o interessante é que, em 2018, eram 10,3 milhões de pessoas. Olhem a quantidade de pessoas, que, nesse período, entre o governo Temer e o governo Bolsonaro, estão agora literalmente passando fome”, lamentou.

O deputado acrescentou ainda que, considerando o critério de insegurança alimentar, “pouco mais da metade da população brasileira, em torno de 120 milhões de pessoas, estão enquadradas na insegurança alimentar, ou seja, não se alimentam o suficiente em termos de qualidade, quantidade, o que afeta muito as crianças, os jovens”.

O deputado João Daniel (PT-SE) acrescentou: “Hoje nós temos milhões no mapa da miséria e da fome. E nós temos um governo que dá o direito aos desempregados e aos pobres de buscar osso nos açougues, e aos ricos, de ter fuzil”, ironizou.

Governo sem projeto, sem princípio

O deputado Marcon (PT-RS) explicou que com o governo Bolsonaro, o Brasil passou a ser a 12ª economia do mundo. “Isso é que mostra a fome, porque não há projeto, não há princípio”.
O parlamentar gaúcho avalia que para mudar esse cenário, “é preciso gerar emprego, gerar salário”. Para ele, tem que haver um salário mínimo digno. “O Brasil está com quase 20 milhões de pessoas passando fome. Quase 20 milhões de brasileiros estão desempregados, e não há política de combate à fome neste País. Não há apoio nem para a agricultura familiar nem para a micro e pequena empresa”, criticou.

O deputado Leo de Brito (PT-AC) também se lembrou que Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014. Ele disse que é preciso se indignar se o País tiver uma só pessoa passando fome. “Agora imaginem termos 20 milhões de pessoas passando fome. Imaginem 120 milhões de brasileiros e brasileiras em insegurança alimentar, inclusive as pessoas que estão empregadas hoje? reagiu”.

“Nós estamos falando de 22% de pessoas que estão empregadas e que têm insegurança alimentar. São 15,7% de pessoas informais que também estão em insegurança alimentar e 3,7% que estão em trabalhos formais e têm insegurança alimentar. Nós temos que nos indignar”, reafirmou.

Também indignado, o deputado Nilto Tatto (PT-SP) disse que o País tem 20 milhões de pessoas que ninguém sabe se vão ou não ter alimento para comer hoje, enquanto, segundo ele, o Brasil bate recorde em produção agrícola.
“Então, vejam a contradição. Esta Casa aqui mesmo aprovou, ainda neste ano, vários projetos anistiando dívidas, renegociando dívidas, colocando incentivos para a agricultura, no entanto nenhum centavo para quem produz alimentos”, reclamou.

“É fundamental para quem produz alimentos, não commodities para a exportação, que o poder público adquira esses alimentos para dar um auxílio para a agricultura familiar e para que isso se torne política pública novamente e combatamos a fome novamente”, defendeu Nilto Tatto.

Os parlamentares Benedita da Silva (PT-RJ), Zeca Dirceu (PT-PR), Frei Anastácio (PT-PB), Vicentinho (PT-SP), Joseildo Ramos (PT-BA) e Rejane Dias (PT-PI) também se manifestaram na Comissão Geral e criticaram a volta da fome ao País.

Benildes Rodrigues

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