Novo coronavírus: a falsa dicotomia entre saúde e economia

Em artigo publicado nessa quinta-feira (2), no portal Congresso em Foco, a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) argumenta que é falsa a dicotomia entre preservar a saúde e salvar a economia. A parlamentar defende o isolamento social e diz que o governo Bolsonaro não está à altura para enfrentar a epidemia.

 

O presidente Jair Bolsonaro tem conclamado a população e governos estaduais e municipais a romper com as medidas de distanciamento social e voltar às atividades habituais. Com a justificativa de que “o sustento das famílias deve ser preservado”, Bolsonaro, à revelia do conhecimento científico atual, coloca ao povo brasileiro uma ilusória escolha entre manter a saúde ou a economia preservada. O que é o óbvio, entretanto, é que não há boa saúde sem economia e não há boa economia sem saúde e o governo federal deve lutar para que se preservem ambas.

O discurso de Bolsonaro de que precisamos voltar à normalidade pode levar vários trabalhadores à falsa impressão de que se pode preservar seu sustento se ignorarmos o coronavírus e retornamos ao trabalho. No entanto, é muito claro que, frente a uma crise de saúde global sem precedentes no último século, a economia necessita muito mais do que força de vontade para se reerguer.

O coronavírus se transmite com grande facilidade, de forma que caso medidas de contenção não sejam colocadas em prática, até dois terços da população podem se infectar antes de se obter um nível de imunidade populacional capaz de barrar a transmissão. Soma-se a esse dado, o alto percentual de casos que evoluem para formas graves com necessidade de internação (de cerca de 15%), a letalidade de cerca de 2% na população geral (sendo muito maior em grupos de risco) e o alto impacto da doença entre profissionais qualificados essenciais, como trabalhadores da saúde.

Dessa forma, além de uma piora da situação sanitária, como evidenciado em partes do Reino Unido, Holanda, norte da Itália e outros países europeus, a interrupção das medidas de contenção defendida por Bolsonaro não será capaz de impedir o impacto econômico do coronavírus no Brasil.

Milhares (ou milhões) serão afastados momentaneamente do trabalho por períodos relativamente longos (semanas) e milhares perderão a vida, uma destruição de forças produtivas com custo humano, social e econômico imenso. Em um país que já vinha sendo gravemente afetado pelo alto número de desempregados, desalentados e trabalhadores informais sem direitos, com aumento rápido da pobreza e da fome, o impacto econômico adicional do coronavírus, independente do fechamento do comércio ou não, será brutal.

Também é óbvio que não é possível proteger a saúde da população e conter a transmissão de coronavírus no Brasil sem garantir um nível de funcionamento da economia e assegurar renda para a população. Até governos de viés liberal-conservador, como os EUA, tem tomado medidas para garantir renda mínima e aumentar acesso a direitos trabalhistas como seguro-desemprego.

No Brasil, o impacto da recessão econômica e da política de desinvestimento já estava sendo sentido na saúde da população desde antes da emergência do coronavírus. O subfinanciamento e sucateamento do SUS, ataques à educação superior e pesquisa no país, todos justificados pela necessidade de ajuste fiscal, também contribuem para que o Brasil não disponha de meios para controlar efetivamente a epidemia. A experiência de países que tem sido relativamente bem-sucedidos no controle à doença mostram que é necessário investir substancialmente em saúde e tecnologia para conter o avanço do vírus e o impacto social da doença. Ou seja, o controle da pandemia passa pelo uso substancial de recursos públicos – não há recuperação de saúde sem economia funcionando.

Então como conciliar saúde e economia no enfrentamento à crise causada pelo coronavírus? Mais uma vez, as experiências de outros países podem nos ajudar a chegar a respostas. É importante enfatizar que o distanciamento social não é um fim em si mesmo. Ele tem se mostrado insuficiente para combater efetivamente a epidemia nos vários países em que foi implementado.

Até mesmo a China – que foi capaz de botar em prática restrições rígidas ao movimento de pessoas, comércio e indústria em áreas afetadas – só foi capaz de reverter a curva de casos para um padrão descendente quando aliou o distanciamento social a outras medidas de vigilância epidemiológica. Da mesma forma, a experiência nos EUA, que por semanas utilizou quarentena, isolamento e distanciamento social, sem sucesso, também nos mostra que  quarentena irrestrita e distanciamento social podem nos dar algumas semanas ou dias, mas não são capazes de eliminar a transmissão completamente.

Em todos os países que eventualmente controlaram a epidemia, como a Coreia do Sul e China, ampla testagem de sintomáticos leves e rastreio de casos foi fundamental. Esse é o caminho que os EUA, com muito atraso, também tem tomado. Nesse sentido, o Brasil tem ido na contramão do mundo. O estado de São Paulo recentemente anunciou que somente casos graves serão notificados, o que impede que a transmissão entre casos leves ou assintomáticos seja freada. Ao contrário, precisamos implementar um sistema amplo de testagem, idealmente em unidades avançadas que minimizem o contato entre possíveis casos, e a partir daí procurar contatos dos casos confirmados. Essa tem sido a única estratégia de controle que tem se mostrado efetiva para limitar a transmissão a ponto de possibilitar o restabelecimento de atividades econômicas sem impor risco de saúde a milhões de pessoas.

Para isso, o Brasil precisa de investimentos e de planos de comunicação e ação integrados entre os estados com liderança do governo federal. É inadmissível que o presidente da República entre em contradição com as orientações do Ministério da Saúde e com medidas de governos estaduais e municipais como tem acontecido. Comunicação em saúde clara e objetiva, que esclareça dúvidas da população e ofereça recomendações inequívocas é imprescindível e não tem sido feita.

O Ministério da Saúde precisa orientar governos estaduais e municipais, provendo apoio técnico e pessoal quando necessário, para que não fiquemos perdidos em recomendações contraditórias. As recomendações precisam ser mais claras e delinear exatamente o tipo de atividades que devam ser completamente interrompidos (como eventos, aulas e funcionamento presencial de determinadas atividades), restritos ou permitidos. O plano de ação também envolve investimentos emergenciais em tecnologia para desenvolver e ampliar nosso próprio sistema de testagem, coleta de dados epidemiológicos para guiar e avaliar as ações de controle e testagem clínica de intervenções terapêuticas.

Nesse ponto, a resposta do Brasil, especialmente no nível federal, tem sido pífia. Ainda mais grave que a subnotificação de casos em geral, que faz com que o Brasil esteja atuando para controlar o coronavírus no escuro, é a subnotificação de casos graves e óbitos, como tem sido relatado por profissionais de saúde em vários estados. Não há justificativa para um país como o Brasil, com um sistema de saúde público e sistemas de notificação e controle epidemiológico em funcionamento desde antes da epidemia, não testar e notificar casos graves e óbitos suspeitos.

O investimento de que precisamos no Brasil é do tipo que tem potencial para, no médio e longo prazo, reduzir a duração da interrupção da economia e minimizar o impacto econômico do coronavírus. Enquanto ganhamos tempo com a realização de medidas de isolamento, quarentena e distanciamento social, precisamos estruturar a resposta imediata dos serviços de saúde e o controle epidemiológico. Ao invés de enfiar a cabeça na terra na esperança de que tudo passe rápido ou perder tempo mentindo e desmentindo informações desencontradas, o governo federal precisa implementar medidas sanitárias que protejam a população, possibilitando a retomada das atividades econômicas em algumas semanas. Não há outra saída: ou lutamos por saúde e economia ou não teremos nenhuma das duas.

  • Erika Kokay é deputada federal (PT-DF)

 

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