Foto: Ednilson Aguiar/SecomMT
A proposta de emenda à Constituição (PEC 215), que transfere para o Congresso Nacional o poder de demarcação das terras indígenas, é inconstitucional. A opinião é do jurista Dalmo Dallari, que nesse artigo pontua os dispositivos constitucionais que são afrontados e alerta sobre os interesses “escusos”, de grupos que defendem esse “flagrante desrespeito” a Constituição. “A motivação de um grupo de parlamentares para essa pretensão – obviamente absurda – é favorecer a invasão de áreas indígenas por investidores do agronegócio, muitos dos quais já são invasores habituais daquelas áreas”.
O jurista ressalta que a demarcação das áreas indígenas está prevista na Constituição e “já foram há muito tempo estabelecidas as regras legais que devem ser observadas para esse fim”. E acrescenta: “A simples leitura das disposições constitucionais em que são enumeradas as atribuições e competências do Congresso Nacional, constantes dos artigos 48 e 49 da Constituição, deixa mais do que evidente que nelas não se enquadra, nem direta nem indiretamente, a função administrativa de demarcação de áreas indígenas, em qualquer de suas etapas”.
“A PEC 215 é claramente inconstitucional, bastando isso para que os membros do Poder Legislativo, verdadeiramente comprometidos com o respeito, a preservação e a efetividade da ordem constitucional, decidam por sua rejeição”, conclui Dallari.
Parlamentares contra a Constituição
Dalmo de Abreu Dallari
É profundamente lamentável, embora não seja de todo surpreendente, que membros do Parlamento, Deputados Federais e Senadores, procurem valer-se do mandato concedido pelo povo para fazer a defesa e promoção de interesses privados, afrontando princípios e normas constitucionais, com absoluto desrespeito pelas instituições, pela ordem jurídica nacional e pelos legítimos interesses do povo brasileiro e de segmentos específicos da população que têm seus direitos expressamente assegurados pela Constituição. Isso está acontecendo agora no Congresso Nacional, pela atuação ostensiva de membros do Parlamento ligados aos interesses dos grupos econômicos ruralistas, que tentam obter a aprovação de uma Emenda Constitucional escandalosamente afrontosa dos princípios fundamentais da Constituição brasileira.
Está tramitando no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC 215, por meio da qual se pretende transferir para o Poder Legislativo a função administrativa, que nada tem de legislativa, de homologação da demarcação de áreas indígenas. O objetivo escandaloso dessa PEC é retirar do Poder Executivo uma atribuição que é sua por natureza, dando aos parlamentares, que são legisladores, o poder de interferir nas demarcações, impedindo que sejam reconhecidas como áreas indígenas, e como tais especialmente protegidas, todas as áreas que um trabalho técnico minucioso e especializado, executado por órgãos ligados à Fundação Nacional do Índio, tiver levado à conclusão de que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. A motivação de um grupo de parlamentares para essa pretensão obviamente absurda é favorecer a invasão de áreas indígenas por investidores do agro-negócio, muitos dos quais já são invasores habituais daquelas áreas. E são vários os casos de invasores dessa espécie que obtiveram de governos estaduais um título de doação daquelas áreas, embora estas nunca tenham integrado o patrimônio dos Estados falsamente doadores.
Para que se veja claramente o absurdo da PEC 215, é oportuno lembrar que a matéria em questão está expressamente enquadrada em disposições claras e objetivas da Constituição de 1988. Como dispões o artigo 231 da Constituição, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Assim, pois, a demarcação das áreas indígenas está prevista na Constituição e já foram há muito tempo estabelecidas as regras legais que devem ser observadas para esse fim. Assinale-se que a demarcação, extremamente importante para efetivação da garantia dos direitos decorrentes da ocupação tradicional das terras pelos índios, foi expressamente determinada pela Constituição de 1988, no artigo 67, onde se diz que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. No cumprimento dessa obrigação constitucional a União, por seus órgãos próprios, vem procedendo à demarcação de áreas indígenas, estando evidentemente atrasado o processo de demarcação, que já deveria ter sido concluído em 1993, mas isso não justifica um deslocamento inconstitucional da competência para demarcar.
A pretensão de transferir para o Legislativo a competência para o ato administrativo de homologação das demarcações é, antes de tudo, e escancaradamente, inconstitucional, afrontando um princípio constitucional básico, que é a separação dos Poderes. A simples leitura das disposições constitucionais em que são enumeradas as atribuições e competências do Congresso Nacional, constantes dos artigos 48 e 49 da Constituição, deixa mais do que evidente que nelas não se enquadra, nem direta nem indiretamente, a função administrativa de demarcação de áreas indígenas, em qualquer de suas etapas. Assim, pois, a PEC 215, além de muitas outras imperfeições, é evidentemente inconstitucional, afrontando a forma e o espírito do artigo 2º da Constituição, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, o que se completa com a especificação das atribuições de cada um desses Poderes em capítulos subseqüentes, não tendo qualquer cabimento a pretensão de transferir ao Poder Legislativo uma parte dos encargos próprios e específicos do Poder Executivo, que é o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. A PEC 215 é claramente inconstitucional, bastando isso para que os membros do Poder Legislativo verdadeiramente comprometidos com o respeito, a preservação e a efetividade da ordem constitucional decidam por sua rejeição.
Artigo publicado originalmente no site do Jornal do Brasil no dia 12 de dezembro de 2014