Audiência na Câmara debate projetos que violam direitos dos indígenas

Audiência na Comissão de Legislação Participativa. Foto: Lula Marques

A Comissão de Legislação Participativa (CLP) promoveu, nesta terça-feira (15), audiência pública para tratar da temática dos retrocessos que os indígenas sofrem desde que Bolsonaro assumiu a Presidência. Eles pedem apoio para impedir avanço de projetos de lei que violam direitos constitucionais.

São dois projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que podem facilitar o avanço das invasões, do garimpo, do desmatamento ilegal e mudar a forma de demarcar terras dos povos tradicionais.

O projeto de lei (PL 490/2007), do ex-deputado Homero Pereira (PSD/MT), prevê mudanças nos direitos garantidos aos indígenas na Constituição de 1988. Na prática, inviabiliza a demarcação de territórios e libera terras demarcadas para o agronegócio, mineração e construção de hidrelétricas. O PL aguarda deliberação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

Já o PL 191 de 2020, encaminhado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, propõe regulamentar a pesquisa e exploração de recursos minerais, o garimpo, a extração de hidrocarbonetos e o uso de recursos hídricos para geração de energia elétrica. Tudo em terras indígenas. O projeto aguarda a criação de uma Comissão Temporária pela Mesa Diretora.

“Mais que o extermínio físico, os povos indígenas vivem o extermínio de sua cultura e tradições. Agora, pelo Estado brasileiro, representado pela Funai, Ministério do Meio Ambiente e também pelo Congresso Nacional, com uma pauta que agride essas nações. Também o poder judiciário, de forma indireta tem prejudicado a população originária. Esse conjunto exige uma reflexão de variados setores da sociedade brasileira”, afirma o presidente da CLP, deputado Waldenor Pereira (PT-BA), e que pediu a realização do encontro.

Waldenor Pereira é presidente da CLP. Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

“A Funai é a favor da soja e não da vida”

Alessandra Munduruku, representante do povo Munduruku (PA), é enfática quando fala sobre a situação do povo dela. “Nosso território tem sido atacado, fogo na casa de parentes, perseguição e hoje roubaram o gado de uma indígena e foram vender na cidade. Os garimpeiros incentivaram a queimar pontes para nenhum de nós chegar em Brasília. A Funai é a favor da soja e não da vida. A gente já toma água e come peixe contaminado. Não estamos aqui para brincar. Não posso ficar calada enquanto meus filhos e colegas são massacrados. Não somos lideranças de bandidos. Tem que haver justiça nesse Brasil”.

Kretã Kaingang, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), alerta que o PL 490 “atinge diretamente tanto terras demarcadas, como outras ainda nesse processo. Num momento de pandemia, essa Casa poderia votar várias ações cobrando do governo genocida vacina e tratamento dos brasileiros”.

“São poucos deputados que ajudam a proteger nossas aldeias, terras e rios. Estou aqui para defender uma parceria firme com a Câmara para nos ouvir e nos proteger. O projeto 490 ninguém aceita, nenhuma etnia aceita também o projeto 191. Hoje, o coração de todas as aldeias está aqui. Não queremos benefícios, mas direitos”, afirma Bepnothi Atydjare Kayapó, da Associação Floresta Protegida.

Dário Kopenawa, representante do povo Yanomami (RR), lembra que “o garimpo em terra indígena não existe na lei, é inconstitucional, mas no nosso território são mais de 20 mil garimpeiros. As crianças e nós estamos tomando água com mercúrio. Os senhores e seus filhos tomariam? Os garimpeiros também estão comprando vacinas contra a Covid-19, isso é outro. O PL 490 mata o povo e derrama sangue na floresta”.

Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) destaca que “o Estado brasileiro tem o dever de demarcar terras indígenas, não é querer ou não. Se o PL 490 for aprovado, a Câmara estará decretando o genocídio dos indígenas”.

“Estamos aqui para ser solidários com vocês e dizer não ao PL 490. Não podemos aceitar de forma alguma que seja aprovado. Querem terras indígenas para ganhar dinheiro com mineradoras”, ressalta o deputado Elvino Bohn Gass (PT-RS), líder da bancada.

A Constituição Federal proíbe a atividade de garimpo em terras indígenas sem a autorização do Congresso Nacional e sem consulta às comunidades afetadas. No âmbito patrimonial, as terras indígenas, de uso exclusivo da comunidade tradicional, assim como os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são bens da União.

“Hoje é um dia de luta e resistência contra o PL 490, que viola direitos constitucionais dos povos tradicionais. Queremos a retirada de pauta desse projeto. É crueldade colocar em votação um projeto que não interessa ao nosso País, em plena pandemia. A quem interessa?”, questiona a parlamentar Joênia Wapichana (Rede-AP).

Pesquisa

Paulo Basta é pesquisador da Fiocruz e coordenou, em 2020, um estudo sobre a contaminação do mercúrio na terra indígena Munduruku. Ele apresentou dados sobre a pesquisa que durou um ano, entrevistou e fez exames com 200 indígenas da etnia, em aldeias próximas ao Rio Tapajós. Em todos, foi detectado mercúrio nas amostras de cabelo. De cada dez indígenas, seis apresentaram níveis acima do limite considerado seguro por agências internacionais.

O pesquisador lembra, porém, que “o mercúrio é só a ponta do garimpo, antes vem o desmatamento, a falta de alimentos, a rede de suporte com maquinário pesado, pistas de pousos clandestinas, álcool, drogas, violência, prostituição e uma série de doenças. E, agora, o espalhamento da Covid”.

“A terra se mistura com o povo”, diz Paulo Basta.

Instrução Normativa nº 1

Felício Pontes Júnior, procurador regional da República destacou a inconstitucionalidade da Instrução Normativa nº 1, de 22 de fevereiro de 2021, do governo federal, que altera os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados em terras indígenas, desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organizações indígenas. A iniciativa também é contestada pelos indígenas. “É constrangedor debater algo que a Constituição e a Convenção 169 já haviam decidido. Essa instrução é completamente contraditória. Mexer nessas coisas é mexer em cláusulas pétreas da Constituição”.

A Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais é um tratado internacional adotado pela Conferência Internacional do Trabalho em 1989. A medida busca superar práticas discriminatórias que afetam os povos indígenas e assegurar que participem na tomada de decisões que impactam na vida deles.

Thiago Carrrion, procurador-chefe da Procuradoria Federal Especializada do Ibama, defende a Instrução Normativa. “Através dela o governo que dar oportunidades para quem busca empreender em terra indígena, inclusive prevê a regularização de atividades anteriores”.

“Hoje, os povos indígenas têm como principal inimigo o presidente da República, dizendo que “nos seus territórios são iguais animais e devem se integrar à sociedade nacional”, uma fala racista que provoca violência contra os povos e promove a insegurança”, afirma Antônio Oliveira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

“Temos que partir para cima mesmo de cada parlamentar que vê com cobiça as terras indígenas. Vamos fazer a luta que for necessária, ninguém vai tirar dos indígenas o que é deles”, aponta a deputada Professora Rosa Neide (PT-MT).

Marco temporal

Renan Lopes da Silva, procurador-chefe substituto da Procuradoria Federal Especializada da Funai, afirmou que aguardam a decisão do STF sobre o marco temporal para decidir sobre quais medidas serão tomadas. “Sempre vamos levar em conta a realidade dos povos e levar essas situações para os processos judiciais em que atuamos”.

O ministro Edson Fachin, relator do caso que analisa a tese do marco temporal já votou, na última sexta (11), contra a existência da iniciativa. O julgamento foi interrompido porque o ministro Alexandre de Moraes fez pedido de destaque. Não há previsão de retorno do julgamento.

“Vamos fazer de tudo para impedir qualquer avanço desses projetos. Também tenho conversado com ministros do STF sobre a tese do marco temporal. Quem chegou aqui antes foram os indígenas e deveríamos preservar e proteger a cultura deles, onde não há violência ou discriminação. Quem desmata e polui é o governo, que é aliado do crime”, pontua o deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

“A qualquer hora, tudo de pior pode acontecer”

Deborah Duprat, ex-subprocuradora-geral da República, lembra que desde a época do descobrimento a Europa considerava os povos que aqui viviam, inferiores. As terras e os povos eram algo provisório. “Esses povos lutaram desde 1500, mas os direitos só foram conquistados com a Constituição de 88 e com a Convenção 169. No entanto, essas vitórias sempre foram acompanhadas de desassossego.

Inúmeras CPIs, mas nada se compara com a violência de agora, com um governo que despreza os indígenas”.

A advogada denuncia que “a demarcação compõe um núcleo da Constituição que não pode ser mexido porque trata da dignidade humana, da ordem constitucional. Está na hora de o Congresso deixar de ser cúmplice das medidas genocidas e de suspensão da democracia por parte do governo federal. A qualquer hora, tudo de pior pode acontecer”.

Também participaram Geovani Krenak, vereador de Esplendor (MG); Tiago Modesto, procurador da República e Agnaldo Francisco, do povo Pataxó Hãhãhãe, representando o Movimento Unido dos Povos e Organização Indígenas da Bahia.

A íntegra da audiência pública está disponível na íntegra, em áudio e vídeo, na página da CLP no site da Câmara dos Deputados.

Indígenas participaram da audiência e denunciaram retrocessos promovidos pelo governo federal. Foto: Lula Marques

Assessoria de Comunicação/CLP

 

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