Trabalhadoras domésticas: entre a Covid-19 e a necessidade

O dia 9 de maio ficará marcado na memória do médico infectologista Gerson Salvador. Naquela noite, ele postou no Twitter: “No mesmo plantão atendo moradora de favela com 1/3 do corpo queimado com álcool por não poder comprar gás e entubo uma empregada doméstica, com Covid-19, vinda diretamente da casa dos patrões. A política de extermínio se mostra em rostos – negros, femininos, pobres e periféricos”.

Médico do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Gerson resumiu em uma postagem os principais dramas vividos em tempos de pandemia do coronavírus pelas empregadas domésticas no Brasil. E segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil é o país com mais trabalhadores domésticos em todo o mundo.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE mostrou que, no quarto trimestre do ano de 2019, as mulheres representavam 92,4% de um universo de 6,3 milhões de trabalhadores domésticos no país, e correspondiam a 14% de todas as mulheres ocupadas no país. Do total, 73,3% não tinham vínculo formal. Mas no primeiro trimestre deste ano, quando a economia brasileira já despencava, a categoria perdeu 385 mil trabalhadores, passando de 6,3 milhões para 5,85 milhões.

O Brasil foi o último país a regulamentar a profissão de empregado doméstico. Logo após fazê-lo, adveio uma crise econômica que afetou ainda mais a categoria a partir de 2017, com a reforma trabalhista do ilegítimo Michel Temer, que aboliu mais de cem dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e abriu as portas para a uberização da economia.

Não à toa, os trabalhadores domésticos são considerados pela OIT os mais expostos ao risco de contaminação pela Covid-19. Isso porque trabalham em contato direto com os empregadores e familiares e, em sua maioria, dependem de transporte coletivo para ir ao trabalho. O risco financeiro também é alto, já que por conta da informalidade as domésticas também não possuem garantias trabalhistas e ficam sujeitas à dispensa sem indenização e não têm acesso ao seguro- desemprego durante o período de isolamento.

Conforme aponta o relatório “Mulheres no centro da luta contra a crise Covid-19”, da ONU Mulheres, as empregadas domésticas representam um grupo de mulheres que será bastante afetada pela crise econômica que acompanha a pandemia. Com isso, as vulnerabilidades dessas categorias e de suas famílias deve se agravar.
Pesquisa do Instituto Locomotiva mostrou que desde o início da pandemia, 23% dos empregadores de diaristas e 39% dos patrões de mensalistas relataram que suas funcionárias continuaram trabalhando normalmente, mesmo durante a quarentena.

Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), diz que a organização vem recebendo mais denúncias de mulheres que estão sendo coagidas a trabalhar. As denúncias mais frequentes são de trabalhadoras que “sob coação, ameaça de perder o emprego ou por acharem que elas podem se contaminar no transporte público”, estão tendo que pernoitar nas casas dos patrões.

“Se não houve nenhum acerto no contrato de que a trabalhadora ia pernoitar no emprego, não tem porque o empregador, neste momento, se aproveitar de uma situação de pandemia para obrigar a trabalhadora a pernoitar no emprego”, afirmou a sindicalista à Agência Pública.

Primeiras vítimas

No início de março, a morte de uma diarista por Covid-19 no Rio de Janeiro, a primeira vítima da doença no Estado, alertou para os riscos enfrentados pelas empregadas domésticas. Ela trabalhava há mais de 20 anos para uma família do Leblon, bairro da Zona Sul carioca. A patroa retornou de uma viagem à Itália e, embora estivesse reclusa em seu apartamento, não havia dispensado os serviços da funcionária.

O segundo caso na Bahia também foi de uma empregada doméstica infectada pela patroa, em Feira de Santana. A empregadora também tinha recém-chegado de uma viagem à Itália. Em seguida, três pessoas da família da doméstica também ficaram doentes. Outra das notícias com maior repercussão foi a de que a décima pessoa infectada no estado era funcionário de um empresário que fugiu da quarentena, em São Paulo, e foi para Trancoso, em Porto Seguro.

Como esses casos, provavelmente outras tantas empregadas domésticas tenham sido as primeiras vítimas de classes sociais mais populares a serem contaminadas pela Covid-19, iniciando um ciclo de contaminação comunitária a familiares, vizinhos e pelos locais onde passaram no trajeto trabalho-domicílio.

Outro caso, o do menino Miguel Otávio da Silva, de cinco anos, que morreu no Recife após cair do nono andar de um prédio de luxo enquanto a mãe passeava com o cachorro da patroa, revelou essa faceta cruel justo na última terça (2), dia em que se completavam cinco anos da sanção da lei que regulamentou a PEC das Domésticas. A mãe de Miguel, Mirtes, continuou trabalhando na casa dos patrões ao lado da mãe durante a pandemia. E ambas acabaram contraindo Covid-19 dos patrões.

Para a sindicalista Luíza Batista, a herança escravocrata impregnada na sociedade brasileira se agravou nesta pandemia. “É, no mínimo, olhar para outro com empatia, com solidariedade, independentemente de cor, classe, religião, orientação sexual. É olhar para o outro como ser humano, como se tivesse olhando para si mesmo”. Mas, diante da realidade econômica, diz ela, “quem tem sua diária está se agarrando a ela com unhas e dentes”.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), o senador Paulo Paim (PT-RS) vê o momento com preocupação. “A categoria vem passando por um momento muito difícil, com o crescimento do número de diaristas, e a crise financeira das famílias que ainda buscam condições para manter o serviço. As profissionais estão ficando mais velhas, mas infelizmente menos protegidas. A Lei Complementar 150 (que regulamentou a PEC das Domésticas) ampliou os direitos sociais, mas na prática eles não estão sendo pagos”, lamentou em reportagem da Agência Senado.

Foto: Gustavo Bezerra

Proteção para as trabalhadoras

A médica epidemiologista Vilma Santana, professora titular do programa Integrado em Saúde Ambiental e do Trabalhador da Universidade Federal da Bahia (Ufba), destaca que, ainda que o perfil ocupacional dos infectados no Brasil ainda não seja conhecido oficialmente, é possível considerar trabalhadores domésticos como um grupo de risco. “É muito comum que elas sejam expostas a todas as doenças facilmente transmissíveis”, diz, citando também as cuidadoras de idosos e babás.

A secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico), Milca Martins, disse que a maior parte da categoria, hoje, trabalha sem condições necessárias para evitar uma doença no local de trabalho. “Eu mesma já fui infectada com a urina do cachorro e até hoje estou em tratamento porque a bactéria se alojou no meu sangue e na minha pele. Quem arca com o custo de ficar doente é a trabalhadora, porque a primeira coisa que os empregadores fazem é mandar embora”, pondera.

A orientação da entidade para os trabalhadores domésticos tem sido de, ao chegar no local de trabalho, exigir condições de segurança e equipamentos de proteção individual. A Fenatrad tem emitidos diversos alertas sobre as condições da categoria, destacando que estão em “situação especial de vulnerabilidade”. A orientação da entidade é de que os empregadores pelo menos forneçam Equipamentos de Proteção Individual (EPIs).

“Isso ocorre porque o mercado de trabalho no Brasil é muito desigual; existem os trabalhadores que são mais protegidos e os que são menos protegidos. O emprego doméstico é atingido de uma forma particular, pois as questões de gênero, raça e classe se comunicam, criando uma realidade verdadeiramente dramática em um contexto de pandemia”, constata o professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFRGS Fernando Coutinho Cotanda.

Fernando avalia que o atual cenário de precarização das relações de trabalho contribui ainda mais para que a pandemia afete a classe de forma mais severa. “Nos últimos anos, estivemos caminhando na contramão da proteção social. A Reforma Trabalhista e as novas leis sobre terceirização são exemplos, não exclusivos, de uma nova realidade que fragiliza o trabalho. Em um momento como o que estamos passando, isso fica evidente. A precarização do trabalho jamais construirá uma sociedade justa e emancipadora”, diz o professor.

Ciente da vulnerabilidade da categoria neste momento, a bancada do PT apresentou em março projetos para garantir direitos às empregadas domésticas. O Projeto de Lei 931/20, dos deputados Valmir Assunção (BA) e Professora Rosa Neide (MT), garante a dispensa das domésticas e diaristas sem perda de salário ou direitos trabalhistas. O empregador pode optar pelo adiantamento das férias. Se a regra for descumprida, o patrão deverá custear adicional de insalubridade e periculosidade aos empregados.

Já a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que foi relatora da PEC das Domésticas, apresentou o Projeto de Lei 993/20, que além da estabilidade no emprego, determina o afastamento obrigatório remunerado dos trabalhadores que façam parte do grupo de risco do coronavírus: idosos, doentes crônicos, gestantes, lactantes, entre outros.

A proposta também retoma o desconto das contribuições na declaração de imposto de renda da pessoa física, desde que o empregador cumpra com o afastamento remunerado dos trabalhadores. Se a presença do trabalhador doméstico for indispensável, o trabalhador será obrigado a fornecer todos os meios possíveis de se combater a doença, proibindo que o custo seja descontado do salário do trabalhador.

O texto de Benedita ainda dispensa de perícia, para afastamentos maiores de 15 dias, dos segurados contaminados com coronavírus ou afastados por contato com outros que contraíram o vírus. E isenta, por quatro meses, os domésticos que sejam microempreendedores individuais (MEIs) de contribuição previdenciária.

Dilma sancionou formalização dos direitos

Em 2 de abril de 2013, a então presidenta Dilma Rousseff sancionou a Emenda Constitucional 72, a PEC das Domésticas. Os empregados domésticos formais passaram a ter jornada diária de oito horas e todos os direitos assegurados por lei, como salário-maternidade, auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição, auxílio-acidente de trabalho, pensão por morte. Em 2 de junho de 2015, Dilma sancionou a Lei Complementar 150, que regulamentou a PEC 72 e ampliou os direitos trabalhistas das empregadas domésticas.

Além do reconhecimento institucional da categoria, também houve aumento na remuneração das trabalhadoras domésticas por conta da política de valorização do salário mínimo adotada nos governos do PT, que vigorou entre 2004 e 2019, quando foi abolida pelo presidente Jair Bolsonaro. Em 1995, o salário médio destas trabalhadoras era de R$ 525, e subiu para R$ 877 em 2018, em valores reais, corrigidos pela inflação.

“A PEC das domésticas mudou muito a vida das trabalhadoras domésticas. Antes, não tínhamos abono família, não tínhamos a jornada de trabalho, que nem sempre os patrões respeitam, mas mudou muito a vida da trabalhadora”, comemora Luíza Batista, da Fenatrad.

Para Mario Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal, a PEC aumentou a formalidade. “A PEC é um marco para a categoria, O problema é a lei ser cumprida. Se as empresas são pouco fiscalizadas, imagina o trabalho doméstico”, ressalvou. Luíza concorda: “Nem todos os patrões respeitam a lei, tanto que a informalidade é muito alta no trabalho doméstico”.

Foto: Bruno Caramori

Esses patrões tiveram em quem se espelhar. Menos direitos para ter mais empregos é o lema dele. Foi com essa ideia em mente que o então deputado federal Jair Bolsonaro votou, em 2012, contra a PEC das Domésticas. Fruto de intensas negociações, o texto final, com relatoria da deputada Federal Benedita da Silva, venceu com esmagadores 347 votos a favor e dois contrários.

Em um programa de tevê exibido em 2015, Bolsonaro se gabou do “feito”. “Fui o único deputado, nos dois turnos, que votou contra todos os direitos trabalhistas das empregadas domésticas”, vangloriou-se. Ao declarar o voto, em 11 de dezembro de 2012, mostrou-se preocupado com os patrões: “Se minha babá tiver um filho até seis anos de idade, eu tenho de pagar creche para o filho da babá do meu filho. É inexplicável a irresponsabilidade”.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, compartilha a mesma visão. Em fevereiro deste ano, durante discurso no Seminário de Abertura do Ano Legislativo da Revista ‘Voto’, em Brasília, disse que o dólar alto “é bom para todo mundo” e destilou preconceito: “Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Vamos importar menos, fazer substituição de importações, turismo. [Era] todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para a Disneylândia, uma festa danada”, disparou.

A deputada federal Benedita da Silva, que trabalhou como empregada doméstica, foi ao Twitter responder a ofensa. “Respeite as trabalhadoras domésticas, ministro. E se elas estão indo para a Disney e os filhos delas para a universidade foi porque os governos do PT possibilitaram esse acesso que o seu governo racista e preconceituoso vem destruindo”, rebateu Bené.

 

Por PT Nacional

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