Veto a Nise da Silveira como Heroína reforça descaso com saúde mental

Foto: Centro Cultural da Saúde

Em novo desrespeito à democracia e ao princípio básico do humanismo, o presidente Bolsonaro vetou o projeto de lei que inscreve o nome da médica psiquiatra Nise da Silveira no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O texto (PL 6.566/2019), que contou com o apoio o do PT no Senado, foi aprovado por unanimidade pelo Plenário em 27 de abril. A decisão foi publicada nesta quarta-feira. Agora, o veto será submetido ao Congresso Nacional. Caso seja derrubado, a proposta será promulgada pelo Legislativo.

Para o senador Humberto Costa (PT-PE), que também é psiquiatra, o veto é lamentável. “Nise da Silveira foi uma mulher à frente do seu tempo, alguém cujo trabalho – reconhecido internacionalmente – mudou os rumos da Psiquiatria. É lamentável que Bolsonaro rejeite a inscrição do nome de uma mulher dessa dimensão no Panteão dos Heróis e das Heroínas da Pátria”.

Se o ato em si já impressiona, o argumento para justificá-lo é ainda mais emblemático: segundo o presidente, a proposta representa “contrariedade ao interesse público”. Ele reforça ainda mais toda sua falta de sensibilidade ao dizer que não é possível avaliar a envergadura dos feitos da médica e seus impactos no desenvolvimento da Nação.

Exatamente por isso, a medida não surpreende o senador. “Era o que se podia esperar de alguém para quem herói é Brilhante Ustra, um torturador que violou a dignidade de seres humanos nos porões da ditadura”, comparou Humberto, em referência a um dos mais cruéis torturadores do regime militar (1964-1985) e um dos algozes da ex-presidenta Dilma Rousseff, elogiado pelo hoje presidente da República no Plenário da Câmara durante a votação do processo de impeachment, em 2016.

Para piorar, Bolsonaro sugere um viés ideológico na proposta, dizendo-se a favor do reconhecimento a personalidades “desde que a homenagem não seja inspirada por ideais dissonantes das projeções do Estado democrático”. De forma dissimulada, ele finge desconhecer que a iniciativa foi aprovada por unanimidade, por todos os partidos do Congresso, inclusive os que dão sustentação ao governo.

Muito ao contrário, o veto é uma ação unilateral do presidente, parcial e sem qualquer debate, esta sim com claro viés ideológico, uma vez que se coaduna com a condução do Executivo na área, como destaca Humberto Costa: “A decisão de Bolsonaro é coerente com o que faz o seu governo no campo da saúde mental: destruição de programas exitosos e retrocesso aos tempos dos horrores no trato dos doentes”.

Holocausto brasileiro

O tema foi objeto de audiência pública há pouco mais de um mês na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado, presidida por Humberto. Na ocasião, especialistas e representantes de entidades dedicadas ao assunto se voltaram contra uma portaria e um edital do governo federal que, segundo eles, abre caminho o para a volta do chamado “holocausto brasileiro” – a atuação dos manicômios, das comunidades terapêuticas e dos hospitais psiquiátricos.

Os debatedores se mostraram indignados com os retrocessos no setor, consolidados em duas medidas que esvaziam a Lei Antimanicomial, resultado da reforma psiquiátrica de 2001: a portaria 596/2022, do Ministério da Saúde, que elimina o Programa de Desinstitucionalização, destinado à reinserção social de pessoas com problemas de saúde mental e dependentes de drogas com longa internação, e o edital 3/2022, do Ministério da Cidadania, que destina R$ 10 milhões a projetos de hospitais psiquiátricos.

A revolução de Nise

Foi contra essa antiga concepção naturalizada da tortura e da prisão como “tratamento” para doentes mentais que se insurgiu a médica alagoana Nise da Silveira. Ela dedicou a vida às pessoas em sofrimento psíquico intenso e revolucionou o tratamento de transtornos psiquiátricos no Brasil ao substituir eletrochoque e contenção física por tratamento humanizado, apostando no valor terapêutico das artes e da interação com animais – sobretudo, tratando os pacientes como seres humanos plenos de direitos.

Nascida em 1905, Nise da Silveira foi a primeira mulher a se formar na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1926. Era a única mulher entre 157 estudantes. Em 1933, foi aprovada num concurso para psiquiatra do Hospital da Praia Vermelha, no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, onde já começou a humanizar o tratamento dos pacientes.

Em 1936, foi presa por 18 meses, acusada de “comunismo”, e ficou afastada do serviço público até 1944. Anistiada, funda em 1946 a Seção de Terapêutica Ocupacional no antigo Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, que hoje leva seu nome.

Em uma área dominada por homens, Nise enfrentou os colegas e se opôs radicalmente ao uso de procedimentos comuns na primeira metade do século 20, como o confinamento em hospitais psiquiátricos, eletrochoque, insulinoterapia e lobotomia.

A médica não permitiu que seus pacientes fossem submetidos a esse tipo de tratamento. Em vez disso, ofereceu a eles tintas, telas e pincéis. Esquizofrênicos ficavam livres para se expressar por meio da arte e terapeutas poderiam estabelecer conexões entre as imagens que emergem do inconsciente e a situação emocional que está sendo vivida pelo indivíduo. Os resultados foram inacreditáveis: além da melhora dos pacientes, eles criavam verdadeiras obras de arte.

Em 1952, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, um centro de estudo e de pesquisa que reúne obras produzidas nos ateliês de atividades expressivas. Atualmente, o acervo possui cerca de 350 mil documentos entre telas, desenhos, pinturas e modelagens.

Nise criou ainda, em 1956, o centro de reabilitação Casa das Palmeiras, também no Rio de Janeiro. A psiquiatra tornou-se referência no país da aplicação das teorias de Carl Jung, com quem estudou durante um ano, na Suíça. Nise foi reconhecida internacionalmente por sua contribuição à psiquiatria, a exemplo de seu trabalho científico sobre esquizofrenia. Ela morreu em 1999, aos 94 anos.

Em 2016, a psiquiatra já havia sido homenageada pelo Senado, que instituiu a Comenda Nise Magalhães da Silveira para premiar, anualmente, três personalidades que, como ela, tenham contribuído para a humanização do atendimento médico no Brasil.

PT no Senado

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