Por Alexandre Padilha
Há mudanças radicais no modo de enxergar a mulher e cuidar da saúde materna no governo Bolsonaro. A substituição do programa Rede Cegonha pela Rede Materna e Infantil (Rami) e a apresentação da nova Caderneta da Gestante representam o retrocesso das políticas integrais de atenção à saúde da mulher e gestante, onde o papel do acompanhamento dessa mulher por uma equipe multiprofissional é ignorado e práticas comprovadamente não eficazes são incentivadas.
A gestante precisa ser vista de forma integral, com acompanhamento de uma equipe multiprofissional. Esse atendimento não se inicia no ato do obstetra dentro da sala de parto. A atenção começa na Unidade Básica de Saúde (UBS) com o planejamento familiar – enfrentando as vulnerabilidades que a mulher tem no local onde vive – no pré-natal de qualidade e na integração com os serviços de parto.
Os serviços de saúde e o cuidado da mulher são a porta de entrada para o acesso aos programas sociais, serviços de proteção a violência e programas de geração de renda, que garantem autonomia.
A Rede Cegonha, que implantamos em 2011 quando fui Ministro da Saúde, acompanhava a mulher de forma integral garantindo assistência obstétrica no pré-natal, parto, puerpério e ao seu bebê até dois anos de idade por uma equipe multiprofissional. A implantação desse cuidado reduziu a mortalidade materna, neonatal e infantil, incentivou o parto humanizado e intensificou a atenção integral à saúde da mulher. Não é o médico sozinho que vai conseguir cuidar dessa mulher.
O cuidado da mulher e criança como integração de vários pontos de atenção são as maiores evidências científicas de como reduzir a mortalidade materna e promover uma primeira infância saudável. A Rede Cegonha também tinha um olhar integral para a primeira infância, para o desenvolvimento dessa criança. Ela apontava a importância da busca ativa das crianças vulneráveis nos serviços sociais e educacionais e deixava explícita a promoção da alimentação saudável.
O programa apresentado pelo governo Bolsonaro esquece a situação de vulnerabilidade da maior parte das mulheres brasileiras, que causam taxas de mortalidade materna elevadas, de todas as dificuldades no cuidado da primeira infância. Ele enxerga a mulher como se ela fosse apenas portadora de uma criança e com foco de como tirar ela da barriga desta mulher, esquecendo quem ela é e a situação de vulnerabilidade que ela possa vir a ter com seu bebê.
A Rede Cegonha inaugurou, com recursos permanentes do Ministério da Saúde, os Centros de Parto Normal, equipamentos próximos ou dentro de maternidades onde a grande maioria dos partos – que não sejam de risco – vão evoluir para partos normais e que são conduzidos por enfermeiras obstetrizes, obstetrizes e doulas, enfrentando a indústria das cesarianas no Brasil. A Rami não incentiva os centros e ignora o papel desses profissionais no parto.
A nova Caderneta da Gestante é mais uma pérola do terraplanismo sanitário. Volta a defender a amamentação como método anticoncepcional, comprovado mais do que já evidente não ser um método adequado e que coloca em risco novas gestações em intervalos curtos e é uma das variáveis que contribuem para a vulnerabilidade na primeira infância, passa pano pra farra da cesarianas e episiotomia – não recomendada pela Organização Mundial da Saúde desde 2018 -, além de sustentar a defesa de manobras que significam riscos gravíssimos as mulheres, como a manobra de Kristeller, prática de empurrar e forçar a barriga com a justificativa de facilitar o parto.
O cuidado à saúde integral da mulher, da gestante e criança, necessariamente, exige articulação regional, com serviços de referência, seja nos equipamentos de Atenção Básica a maternidades de alto risco. Para isso, é necessário que a política de atenção esteja pactuada com estados e municípios.
A política apresentada pelo governo Bolsonaro simplesmente impõe o uso de práticas ultrapassadas e que desrespeitam a mulher e não foram construídas com a sociedade. Entrei com ações na Câmara dos Deputados para sustar a nova Rede Materna e Infantil e no Tribunal de Contas da União para que a 6ª edição da Caderneta da Gestante seja investigada por incentivar práticas de violência obstétrica e diretrizes não comprovadamente eficazes.
É inconcebível que o poder público recomende, oriente e financie práticas de caráter duvidoso e sem respaldo científico.
*Alexandre Padilha é médico, professor universitário e deputado federal (PT-SP). Foi Ministro da Coordenação Política de Lula e da Saúde de Dilma e Secretário de Saúde na gestão Fernando Haddad na cidade de SP.