Sem o povo negro não há democracia no Brasil

Cleia Viana/Câmara dos Deputados

A crise institucional da Fundação Cultural Palmares, que vem sofrendo seguidos golpes do governo neofacista de Jair Bolsonaro, por meio das ações racistas do seu atual presidente, foi motivo de polêmica repercutida recentemente na mídia nacional.

Isso aconteceu porque a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados colocou em pauta a crise da referida instituição e convidou o seu presidente para discuti-la, mas este não apenas se negou de participar da audiência, como ainda tentou desqualificar publicamente seus membros nas redes sociais, seguindo a cartilha bolsonarista.

A Fundação Palmares foi criada para agir como um “quilombo” cultural da memória das lutas dos povos negros escravizados e também para cuidar dos quilombos remanescentes e promover políticas de igualdade racial e combate ao racismo.

Mas o que se constata são ações de desmonte desses objetivos da Fundação, como a retirada dos nomes de celebridades e de representação das lutas do povo negro; o desrespeito aos direitos garantidos das comunidades quilombolas, cujas terras são entregues à sanha dos grileiros e o abandono do acervo cultural da entidade, descartado como se fosse lixo.

O desmonte da Fundação Palmares pelo governo racista de Bolsonaro é parte de toda uma política que intensifica o racismo estrutural herdado do longo período histórico do trabalho escravo. Uma política que começa pela volta da exclusão social e da fome, passa pela precarização das relações de trabalho, pelo desemprego, pelo desmonte da educação e saúde públicas, pelo corte do programa de moradia popular e os ataques à política de cotas e atinge o auge no genocídio da juventude negra das favelas e periferias de todo o país.

Essa crescente agressão contra a vida da população negra, contra a sua identidade cultural e a negação do seu papel fundamental na formação histórica do Brasil é mais uma tentativa cruel, repetida várias vezes nos passado, de apagar nosso legado e nos reduzir a uma situação de subcidadania, apenas uma massa oprimida sobrevivendo em condições de pobreza absoluta e sujeita a todo tipo de violência.

A defesa da Fundação Cultural Palmares se torna, assim, um símbolo da luta contra a extinção das políticas públicas de corte popular e de igualdade racial em todos os órgãos públicos. Representa a manifestação de respeito pelos direitos históricos e sociais de mais de 120 milhões de negros e pardos e a defesa do papel transformador da cultura de nossa ancestralidade.

As novas gerações da população negra estão cada vez mais conscientes da sua identidade racial e histórica e são elas que ocupam as ruas combatendo o racismo estrutural, realimentado pela continuidade de uma sociedade marcada pela elevada desigualdade social e discriminação racial e de gênero.

A colônia chamada Brasil só se viabilizou economicamente no momento em que os primeiros negros escravizados chegaram em nosso território, sequestrados da África por traficantes de escravos portugueses. Foi o duro e cruel trabalho escravo que desenvolveu a colônia e a monarquia independente, cuja abolição fez surgir um tipo de República que quase nunca consegue existir de forma democrática.

A causa mais profunda do atraso das classes dominantes brasileiras, como bem analisa o sociólogo Jessé Souza, no livro “A Elite da Atraso”, está no reacionarismo inscrito no seu DNA histórico.

A base do poder social da colônia, que continuou na monarquia estava na família patriarcal proprietária de terras e de escravos. Com a abolição, o regime de escravidão deixou de existir, mas a família patriarcal proprietária continuou existindo e mais tarde investindo também na indústria e no setor financeiro.

Essa herança racista e machista da família patriarcal contamina setores das classes médias e realimenta o racismo estrutural.

Quando Bolsonaro defende a família é desta família patriarcal que ele está falando e não da família pobre e preta que ele destrói no dia a dia com a sua política.

Não é possível um país tão rico e com potencial de recursos humanos tão grande, como o Brasil, continuar a se arrastar atrás das grandes potências como se fosse um mendigo. Mas sem a participação do povo negro e sua inclusão plena no desenvolvimento nacional, qualquer transformação democrática e social do Brasil será incompleta e não conseguirá tirar o país de seu lugar subalterno na ordem internacional.

Portanto, a defesa do Brasil como uma república verdadeiramente democrática vai muito e além da retórica e exige, na prática, o reconhecimento histórico do povo negro, da sua inclusão social, de seu desenvolvimento educacional e cultural e do pleno gozo de seus direitos de cidadania.

*Benedita da Silva é deputada federal (PT-RJ)

Texto publicado originalmente no Brasil 247

 

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