Sangue não é mercadoria: PEC do Plasma no Senado ameaça a vida

Deputada Ana Pimentel. Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

(*) Ana Pimentel

 

Uma gravíssima ameaça à vida está colocada no Senado. Trata-se da  PEC do Plasma (Proposta de Emenda à Constituição 10/2022), que busca permitir que a iniciativa privada colha e processe plasma humano, um componente do sangue, abrindo espaço para a comercialização dele e de seus derivados.

Numa manobra visivelmente neoliberal e de ataque à vida, o texto busca alterar a Constituição de 1988, (não por acaso, nossa “Constituição Cidadã”), que em decisão histórica definiu que caberia apenas ao Estado brasileiro o processamento e distribuição de sangue e hemoderivados no país. Está no Art. 199, parágrafo 4º. da Constituição Federal. Desde então, política do sangue estaria resguardada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que  também é o principal destinatário dos seus serviços e produtos.

A PEC do Plasma acrescentaria um parágrafo à Constituição:

  • 5º A lei disporá sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa pública e privada para fins de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados a prover o sistema único de saúde.

A apreciação da proposta no Senado ocorre nesta quarta (4), e a sugestão de abrir o manejo do plasma à iniciativa privada pode até parecer, pelo texto, um passo na direção do investimento em pesquisa de tecnologias da saúde. Mas na realidade, é mais um ataque cruel e descarado à vida da população brasileira, que passaria a ter que ver o sangue como mercadoria, tendo que pagar para ter acesso a tratamentos que dependem do processamento de plasma  e derivados.

Existe uma campanha leviana e mentirosa dizendo, literalmente,  que “o Brasil não tem tecnologia para processar o plasma”, e que a maioria do material seria desperdiçado. Mentira. A unidade da Hemobrás em Goiana (PB) é simplesmente a maior do gênero na América Latina, com capacidade para processar 500 mil litros de plasma ao ano, o suficiente para tornar o Brasil, enfim, autossuficiente nestes insumos biológicos. Temos tecnologia sim, para processar nosso plasma. E a importância de manter seu manejo exclusivamente com o Estado é continuar assegurando que os usuários e usuárias do SUS tenham acesso universal e gratuito ao fornecimento de medicamentos derivados do sangue.

Mas por que, então, há tanto interesse em privatizar o processamento de plasma? De acordo com dados farmacêuticos, o mercado de hemoderivados no Brasil movimenta cerca de R$ 10 bilhões por ano. A PEC do Plasma representa, na prática, o capitalismo em sua forma mais vil e predatória, cometendo o absurdo de transformar uma parte do corpo humano em commodity e sujeitando-a à venda.

Num Brasil não muito distante, antes da Constituição de 1988, pagava-se para coletar plasma humano. E nesse Brasil, devastado pela fome e pela crise econômica, como foi em meados dos anos 1980, é claro que as pessoas vendiam seu sangue – literalmente – para poderem comer.

Esse mesmo país, antes do controle exclusivo da Hemobrás sobre os derivados de sangue viveu uma profunda crise sanitária com a epidemia de AIDS. Com a falta de controle e qualidade do sangue, como acontece quando não se tem certeza da origem de um “produto” em qualquer comércio, o contágio do vírus HIV via transfusões foi potencializado. O sociólogo Betinho, importante ativista social e ator importante na Constituinte de 1988, foi uma das vítimas fatais de transfusão contaminada, marca desse sistema de saúde capitalizado e voltado para o lucro, assim como seus irmãos Henfil e Francisco Mário.

A comercialização e sobretudo a exportação de sangue nos mantém, como país, no mesmo modelo de exportação de bens e recursos naturais a que fomos relegados historicamente por tantos anos. É o mesmo lugar neocolonial em que parte da elite brasileira quer nos manter. Um lugar onde o direito ao bem-estar e à vida é um privilégio de quem pode pagar por eles. A exportação de plasma não significaria melhoria de acesso a medicamentos e tecnologias de saúde. Para isso, precisamos de fortalecimento da Hemobrás, das universidades e do SUS. A Hemobrás é uma empresa forte, produtiva e NOSSA. É nessa articulação – Hemobrás, SUS e Universidade – que podemos ser o principal país em processamento e distribuição dos melhores recursos de saúde para a população.

O plasma é um bem que deve ser protegido, e a doação de sangue, ao contrário de sua venda como mercadoria, é um pilar fundamental do acesso à saúde e do princípio societário. É de mais SUS que precisamos, de mais fortalecimento da Hemobrás, para que a estatal amplifique o processamento e gerenciamento do material coletado à sua capacidade máxima. Com isso, protegemos a vida da população brasileira, que terá assegurada a sua integridade pelo Estado, como é agora e deve sempre ser. Não podemos aceitar viver em uma sociedade que põe preço no sangue de seus cidadãos e cidadãs.

 

(*) Ana Pimentel é deputada federal (PT-MG)

 

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