O sistema tributário se mantém pródigo na sua regressividade ao pesar a mão nas alíquotas que incidem sobre o consumo e aliviar nas que tributam ou a renda, o grande patrimônio e a grande fortuna
No dia 28 de agosto, o Presidente Lula sancionou a lei que reajusta o salário mínimo para R$ 1.320, estabelece a nova política de valorização do mínimo e corrige a tabela do Imposto de Renda (IRPF), com isenção para quem ganha até R$ 2.640. Isso representa um grande avanço na melhoria da qualidade de vida para a população com menor renda e o cumprimento de uma promessa de campanha.
Além disso, os mais ricos também vão entrar no imposto de renda. Lula assinou e remeteu ao Congresso Nacional uma medida provisória (MP 1.184/2023) que equipara as regras tributárias entre fundos fechados à legislação já vigente para fundos abertos, além de um projeto de lei que muda a tributação de fundos offshore.
Com essas medidas, o presidente pretende corrigir desigualdades no nosso sistema tributário. A falta de isonomia é, hoje, uma questão de grande relevância para o Brasil. O sistema tributário se mantém pródigo na sua regressividade ao pesar a mão nas alíquotas que incidem sobre o consumo e aliviar nas que tributam ou a renda, o grande patrimônio e a grande fortuna. Ademais, privilegia super-ricos que, por meio de diversos mecanismos – dentre eles as offshores – aplicam capitais no exterior.
Está claro que a representação desses interesses é fortíssima no Congresso Nacional. Boa mostra disso foi a reação dos presidentes da Câmara e do Senado que se apressaram em afirmar que o Projeto de Lei de Conversão (PLV) da medida provisória do salário mínimo (MP 1172/23) continha matéria estranha: justamente a tributação de capitais no exterior.
Não há nenhuma matéria estranha, dado que as duas MPs têm o mesmo objetivo: aumentar a renda das famílias mais pobres. Enquanto a tributação dos capitais no exterior, que tem outros fins, não configura matéria estranha porque foi incluída por obrigação prevista na LRF. A lei estabelece que o Executivo e o Congresso providenciem compensação sempre que adotarem medidas que resultem em renúncia fiscal, como o aumento da faixa de isenção do IRPF.
São muitas as questões em jogo quando se trata de mais de R$ 1 trilhão aplicado por brasileiros no exterior, segundo dados do Banco Central. Por isso, ressalto que na atitude comum dos presidentes das duas Casas há um ponto que se justifica. Caso tivesse sido votada, do modo como estava no PLV, a tributação de capitais no exterior teria sido aprovada sem o necessário amadurecimento pelo Congresso. No entanto, o debate sobre o tema poderia ter sido iniciado em maio, quando da publicação da MP 1171/23, o que não aconteceu.
O valor trilionário dos recursos envolvidos, além da multiplicidade de formas, caminhos e descaminhos na tramitação dessas aplicações no exterior, apresenta um ponto em comum: a negação de suas responsabilidades com o Brasil por meio da sonegação fiscal. A regulamentação deste capital gigantesco é urgente e necessária, não só por razões fiscais, mas também por segurança, estabilidade econômica e por uma questão civilizatória. O Brasil é uma nação soberana e não um enclave de negócios apenas para enriquecimento de poucos e para exportação de seus capitais aqui acumulados.
É verdade que o capital exportado foi direcionado a muitos países, inclusive a grandes economias dotadas de sistemas financeiros regulados, que cobram tributos significativos. Mas também é verdade que boa parte foi aportar nos chamados Paraísos Fiscais, com inúmeros privilégios: baixos tributos e até isenção fiscal, sigilo total em um modelo no qual não se tem acesso aos titulares das aplicações e não se pergunta sobre a origem do dinheiro e nem sobre seu destino. Aí, as tais offshores e os trusts reinam.
Modelos assim podem resvalar facilmente da busca de aplicações em países que cobram menores tributos para a pura e simples sonegação fiscal ou para a lavagem de dinheiro de múltiplas origens: corrupção, drogas, crime organizado entre outros. A sonegação é o aspecto mais visível e bem denunciado pela imprensa a partir da investigação Pandora Papers. O Jornal El País, por exemplo, divulgou a relação de 66 brasileiros detentores de offshores devedores de R$ 16 bilhões à Receita Federal do Brasil em 2021.
Não há como o Brasil continuar acalentando esse tipo de privilégios. Existem questões que precisam ser colocadas à mesa pelos atores pertinentes sobre a regulamentação e tributação de capitais no exterior:
- Qual o nível adequado das alíquotas a serem aplicadas?
- Os ganhos decorrentes da variação cambial que excederem ao valor de US$ 5.000 devem ou não ser tributados? Qual o impacto financeiro? Qual o tratamento dado a essa questão pelas principais democracias do mundo?
- Na MP 1171/23, o Ministério da Fazenda estimou a receita resultante das alterações da tributação sobre os ganhos de capital investido no exterior em R$ 3,25 bi, R$ 3,59 bi e R$ 6,75 bi em 2023, 2024 e 2025, respectivamente. Com a propalada redução das alíquotas e a exclusão da tributação sobre os ganhos de variação cambial, como ficará a arrecadação?
- Se houver a desidratação na capacidade de arrecadação da tributação dos ganhos de capitais investidos no exterior, que outros aspectos justificam a nova legislação?
O modelo em vigor hoje estimula a exportação de capitais, na medida em que investimentos realizados no Brasil pagam mais tributos do que no exterior. Esse ponto, por si só, exige providência legislativa que estabeleça isonomia tributária.
Fuga da tributação, adesão a outras práticas criminosas e incentivo à especulação com o preço de alimentos, combustíveis, remédios e insumos diversos contribuem para boa parte dos problemas sociais e econômicos do mundo. Tudo isso exige ação concertada entre as nações e o Brasil está atrasado em relação a esses assuntos, portanto, é urgente que o país comece pelo menos tributando os capitais aqui amealhados, mas investidos lá fora.
Merlong Solano Nogueira é Deputado federal pelo PT do Piauí, foi relator da Medida Provisória 1172/23
Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique