Pimenta: Não podemos permitir que responsáveis pela chacina do Jacarezinho sigam matando nas favelas e periferias

No meio do fogo cruzado entre duas forças do crime organizado — a milícia e o tráfico de drogas, num território onde o Estado nunca comparece para garantir direitos e prestar serviços, mas sempre para repressão — a populaçãodas favelas do Rio de Janeiro se debate entre a fome e a violência, agora acrescidas pela pandemia de Covid-19.

Na carnificina de 6 de maio na favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio, aparentemente a milícia levou a melhor com com o tráfico.

Ancorada no aparato do Estado, expulsou o concorrente, promoveu uma operação de limpeza para estabelecer o controle sobre o território e, de quebra, desafiou a Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) do Supremo Tribunal Federal que limita ações repressivas durante a pandemia.

A face da barbárie exposta pela carnificina da favela do Jacarezinho, que deixou um saldo de 28 mortos, expõe uma verdade histórica que a sociedade brasileira evita encarar: o racismo estrutural, que faz com que Estado Democrático de Direito não contemple a favela, como afirmou o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Hélio Luz, em entrevista nos últimos dias.

Hélio Luz observa:

“Na senzala do século XXI, a favela, a polícia tem como objetivo manter no poder quem está no poder. Ou seja, manter a elite intacta, não permitindo a ascensão do povo pobre. Ocorre que o Estado brasileiro é um Estado escravista. Que exclui, que separa, separa muito. O abismo social aqui é muito grande. 84% da população está excluída. E qual é a função da polícia? É manter os 84% sob controle. A qualquer preço”.

Qual é o instrumento de controle?

A polícia: o feitor coletivo para manter intocadas as desigualdades sociais.

Qual é o método? O de sempre, a violência indiscriminada. Quarenta mil mortes violentas em 2019/2020, no Brasil.

Em nenhum lugar do mundo se mata tanto, incluídos aqueles países que se encontram em guerra civil aberta.

A máxima repetida pela direita há décadas, “bandido bom é bandido morto”, não trouxe mais segurança.

“Traz mais corrupção, mais crimes e mais mortes”, lembra Luiz Eduardo Soares, um dos estudiosos de segurança do país.

A desenvoltura com que os órgãos policiais se movem nas periferias das grandes cidades brasileiras é fartamente conhecida.

Na operação que resultou na carnificina do Jacarezinho, a cargo da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente – DPCA, os policiais cumpriam 21 mandados de prisão.

Dos alvos dos mandados, seis foram presos. Outros seis foram mortos. Uma eficiência de fazer inveja às demais polícias do mundo. Outros 15 mortos não constavam entre os procurados pela DPCA.

Além das flagrantes alterações da cena do massacre, testemunhadas, fotografadas, filmadas, um delito já corriqueiro para dificultar a investigação posterior das circunstâncias do crime, há um aspecto que chama a atenção na tragédia.

O número das armas apreendidas durante a operação – 15 armas ao todo – foi menor do que o número de executados. E bem menor do que a mais de uma centena apreendidas no Condomínio Residencial do Clã Bolsonaro, no Rio de Janeiro.

Como explicar o discurso oficial da “reação violenta” dos procurados pela polícia se o número de armas encontrado em seu poder soma a metade do número de mortos?

Ou estaremos francamente diante de uma ação típica de grupo de extermínio?

Ao avaliar os resultados da operação, o governador do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, concluirá, diante do êxito inaugural de sua gestão, que jamais serão aliciados menores pelo tráfico na favela do Jacarezinho.

Aparentemente, para tranquilizar o País, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, veio em nosso socorro para afirmar taxativo: “Tudo bandido!”.

Obrigado, general, depois desse veredito dormiremos em paz.

Dizer pura e simplesmente que eles eram criminosos não justifica matá-los. Principalmente quando se sabe que muitos desses mortos não representavam perigo nenhum.

A polícia tem o compromisso legal de observar as leis. Observar a lei significa atirar quando há uma situação de legítima defesa, por isso policiais usam armas no mundo todo.

“Eu confesso que nunca vi algo desse tipo em nenhum lugar do mundo todo – e visitei muitos países estudando a questão –, à exceção de locais em guerra civil, como a Síria e o Afeganistão”, observa o coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo José Vicente Silva Filho, ao comentar a chacina.

Os porta-vozes da operação subiram ao pódio para receber as comendas, numa entrevista não menos escandalosa do que o massacre que pretendiam relatar, nos dando a dimensão do enraizamento do autoritarismo, racismo e fascismo no aparato estatal brasileiro.

“Os representantes da Polícia Civil criticaram em diversos momentos da entrevista coletiva o que chamaram de “ativismo judicial” que, segundo eles, tem impedido a presença do Estado, através da polícia, nas comunidades.

Questionados mais de uma vez se estavam se referindo ao STF, os policiais disseram que não iriam nomear “nenhuma pessoa ou instituição”. Nem seria necessário…

As comemorações da chacina nas redes sociais são outro elemento complexo e doloroso que precisamos enfrentar em contraposição a esta cultura violenta e fascista que se alastra pelo território nacional.

O massacre no Jacarezinho — a maior chacina da história do Rio de Janeiro — exige acompanhamento rigoroso das investigações por parte do Ministério Público, das Comissões de Direitos Humanos das Casas Legislativas, OAB, Comissão Arns e outras entidades de defesa dos Direitos Humanos.

A barbárie da favela do Jacarezinho não pode permanecer impune.

Uma sociedade civilizada não pode permitir que os responsáveis, utilizando o poder do Estado, sigam matando os negros e os pobres que habitam as favelas e periferias do Brasil.

Uma democracia digna não pode admitir “zonas de exclusão” de direitos.

Paulo Pimenta é deputado federal (PT-RS)

Artigo publicado originalmente no site VIOMUNDO

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