Em meio a uma atmosfera de autoritarismo, intolerância, notícias falsas, violência e à grande animosidade que dividiu famílias, a eleição de Jair Bolsonaro nos coloca diante do nosso maior desafio enquanto nação, desde o final da ditadura militar, em 1985: a manutenção da democracia, das liberdades individuais, dos direitos civis, trabalhistas e do espírito solidário e acolhedor que sempre foram marcas do nosso povo, no Brasil e no mundo.
Essas questões se colocam à prova por conta dos acontecimentos registrados durante o processo eleitoral. Além do atentado contra Bolsonaro, fato que atacou nossa democracia, tivemos casos de agressão, assassinatos – como o que vitimou o mestre de capoeira Moa do Katendê, em Salvador -, racismo, homofobia, preconceito contra nordestinos, entre outras coisas. Tudo alimentado pelo ódio destilado pelo próprio presidente eleito.
Terminada a eleição, porém, precisamos nos valer do bom senso, da cidadania e do pleno funcionamento das instituições democráticas, para que haja o reequilíbrio social e, assim, possamos continuar trabalhando, contribuindo e lutando pela construção de um país melhor.
Para que isso aconteça, precisamos enxergar os três brasis depositados nas urnas em 28 de outubro: 1º. O que elegeu Jair Bolsonaro democraticamente com 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos, 39,2% do eleitorado); 2. O representado pelos 47 milhões de eleitores que depositaram suas esperanças no professor Fernando Haddad – 44,87% dos votos válidos, 31,9% do eleitorado; 3. O dos 42,1 milhões (28,8% do eleitorado) que exerceram o direito de não votar em nenhum dos dois candidatos; não compareceram às urnas, votaram em branco ou anularam o voto.
Nesse momento, precisamos respeitar a vontade popular em todas as suas nuances e trabalhar para que as diferenças depositadas nas urnas não sejam convertidas em extremismo e traduzidas em atos de violência, barbárie, intolerância e preconceito nas ruas, bares, escolas, locais de trabalho e nos lares brasileiros.
Casos como o do estudante paulistano que usou as redes sociais para fazer apologia à morte de negros e pessoas com ideologia de esquerda; da eleitora que fantasiou o filho de 9 anos de escravo para uma festa de Halloween numa escola particular de Natal; ou da deputada estadual catarinense que estimulou estudantes a monitorarem, gravarem e denunciarem professores que se manifestarem contra o presidente eleito.
É claro que isso depende, sobretudo, do novo presidente, que precisa se despir do figurino de candidato e se comportar como chefe de Estado, atuando como pacificador e defensor da democracia. Aliás, não é papel de chefe de Estado ameaçar veículos de imprensa e condená-los à morte, valendo-se do poder da caneta.
A nós, parlamentares, dirigentes, militantes e vigilantes permanentes da democracia, cabe valorizar cada um dos mais de 47 milhões de votos que nos foram confiados e nos colocar à disposição dos outros 42,1 milhões de brasileiros e brasileiras que não votaram em Fernando Haddad, mas evidenciaram que não compactuam com o retrocesso e a retórica fascista presentes na candidatura que venceu a eleição.
Vamos seguir trabalhando por um país melhor. Sempre com os olhos voltados ao governo que se aproxima e já acena a países como Estados Unidos e China, com objetivo de ampliar a política privatista de Michel Temer, vendendo distribuidoras de energia e liquidando nosso pré-sal. Inclusive, há um esforço no Senado Federal para a votação do projeto que vai decretar a entrega definitiva dos campos de petróleo em águas profundas para empresas estrangeiras e a redução da Petrobras a uma exploradora secundária do nosso petróleo.
A aliança Temer-Bolsonaro também quer aproveitar o cheque em branco que recebeu nas urnas para acelerar o trâmite no Congresso Nacional e votar, em regime de urgência, outros dois projetos: a reforma da previdência, atacando o direito à aposentadoria do trabalhador e da trabalhadora brasileiros; e mudanças na Lei Antiterrorismo, para criminalizar movimentos sociais e minar a resistência popular.
Esperamos que o presidente eleito lembre-se de que “o povo não existe por causa do rei, mas o rei existe por causa do povo” (John Milton, poeta inglês).
*Deputada federal (PT-SP)