Ouvi e vi, com espanto e até mesmo com medo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente Jair Bolsonaro – que o queria embaixador do Brasil nos Estados Unidos – advogar a volta do Ato Institucional nº 5. O nome pode até ser considerado criativo, mas na prática foi e é uma coisa repugnante: a DITADURA.
Começo meu alerta lembrando: não há, no mundo inteiro, um único caso de país desenvolvido que não seja democrático. Em todos eles o governo está submetido à vontade popular que se manifesta nas eleições e também em plebiscitos e referendos; em todos eles a sociedade e os governantes estão sujeitos às leis votadas em parlamentos ou decididas diretamente pelo povo em plebiscitos; em todos eles há poder judiciário independente, assim como liberdade de imprensa, liberdade de organização sindical e associativa e liberdade religiosa. Uma coisa não existe em nenhum deles: o direito de atacar a Constituição.
No Brasil, diante das muitas contradições de nossa democracia e de práticas negativas muitas vezes adotadas por autoridades que exercem os poderes (judiciário, executivo, legislativo e Ministério Público), há pessoas saudosas da última ditadura, que vigorou entre 1964 e 1985. No atual governo, de tendência claramente autoritária, há muitos defensores da DITADURA.
Diante deste quadro me parece oportuno resgatar alguns dos resultados da ditadura, ou seja, como ela repercutiu na prática sobre as instituições e sobre a vida das pessoas. Para isto destaco alguns tópicos abaixo:
Ditadura e democracia
O AI5, de 13 de dezembro de 1968, fechou o Congresso Nacional, cassou mandatos de parlamentares e de ministros do Supremo Tribunal Federal, aumentou a censura à imprensa e a repressão às organizações sindicais e até religiosas. Nas palavras do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas: “o AI5 definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados”.
Ditadura e combate à corrupção
Não havia condições práticas de combater a corrupção, pois o poder judiciário e o Ministério Público não eram independentes. A imprensa estava sob severa censura e a Polícia Federal atuava como polícia política a serviço do regime, com muitos dos membros tendo participado inclusive de perseguições e torturas.
Ditadura e inflação
Entre os problemas utilizados no início de 1964 para justificar o golpe e a implantação da ditadura no Brasil aparece a inflação, que cresceu de 7,0% ao ano em 1957 para 79, 9%, também ao ano, em 1963.
Vejamos como foi o desempenho da ditadura neste quesito, que é fundamental para a estabilidade da economia e que afeta de modo perverso as pessoas mais pobres e também a classe média:
- No primeiro ano, 1964, a inflação continuou crescendo e chegou a 92,1%;
- A partir de 1965 a inflação entrou em trajetória de queda e este ritmo se manteve até 1972, tendo declinado de 34,5% para 15,7%;
- A partir de 1973 a inflação voltou a crescer, embora tenha sido divulgado nesse ano um índice de 15,6%. Ocorre que ficou provado que o IBGE foi obrigado a manipular o índice, tendo surrupiado 7% do mesmo. Então na verdade o índice foi de 22,6%. Além disso, o IBGE demorou muitos anos para recuperar a credibilidade que tem hoje.
- A partir de 1973 a inflação cresceu de ano a ano até chegar no último ano da ditadura, 1984, em 223,8% ao ano.
Os dados acima citados, compilados pelo Banco Central e pela Fundação Getúlio Vargas, são inquestionáveis. A ditadura falhou no controle do principal regulador da economia de mercado: o valor da moeda. A inflação corrói o poder de compra da moeda e funciona como mecanismo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos e da sociedade como um todo para o Estado, que sempre corrige os tributos cobrados, mas não ajusta suas obrigações na mesma proporção.
Ditadura e salário mínimo
A ditadura deu início a uma política de arrocho salarial, que depois continuou nos governos democráticos até 2002. Somente no começo do governo Lula, em 2003, se implantou uma política de valorização do salário mínimo, retomando neste aspecto uma boa herança do governo Getúlio Vargas.
Os dados demonstram isto claramente. Por exemplo, segundo estudo do DIEESE, o valor do salário mínimo (atualizando a moeda para o Real de janeiro 2011 pelo índice de inflação ICV/DIEESE) evoluiu assim: 1940 – R$ 1.202,29; 1959 – R$ 1.732,28; 1970 – R$ 729,20; 1980 – R$ 686,08; 1990 – R$ 414,15; 2000 – R$ 287,00; 2011 – R$ 540,00.
Tendo chegado ao seu maior poder de compra em 1959, o salário mínimo foi sendo corroído pelo arrocho salarial nas décadas seguintes. Com o controle da inflação, conquista do Plano Real, ele experimentou certa valorização em meados dos anos 90. Todavia apenas a partir de 2003 se implementou efetiva política de valorização do poder de compra do salário mínimo. Por isto mesmo foi possível sair de um salário equivalente a cerca de 85 dólares em 2002 para cerca de 329 dólares em 2014, no penúltimo ano de governo petista.
A aferição do valor do salário mínimo em dólar também demonstra a efetividade da política de arrocho salarial durante a ditadura e em anos seguintes, nos governos Sarney, Collor, Itamar Franco e FHC. Conforme dados publicados pelo site brasilfatosedados.wordpress.com o valor do salário mínimo em dólar apresentou a seguinte evolução: 1970 – U$ 39,0 / 1980 – U$ 90,0/ 1990 – U$ 58,0 /1995 – U$ 111,0 / 2000 – U$ 83,0 / 2005 – U$ 122,0 / 2010 – U$ 291,0 / 2014 – U$ 329,0
A promessa de fazer o salário mínimo brasileiro chegar ao equivalente a 100 dólares, tantas vezes propalada, foi atingida de modo passageiro nos primeiros meses do Plano Real. Somente a partir de 2003 o aumento do salário mínimo faz com que seu valor em dólar cresça de modo sustentado, superando em muito os 100 dólares. Importante registrar que esta tendência mudou a partir do impeachment da presidente Dilma, com o valor do salário mínimo em dólar caindo desde o governo Temer. Valor do salário mínimo com base na cotação do dia: 31.12.16 – U$ 270,7/ 31.12.17 – U$ 283,9 / 31.12.18 – U$ 246,1 / 01.11.2019 – U$ 250,1.
Ditadura e violência no campo e nas cidades
Todas as pesquisas são unânimes em suas conclusões quanto a relação entre o êxodo rural (transferência acelerada, mediante expulsão, de milhões de pessoas da zona rural para as cidades) com a violência que ainda hoje é endêmica no Brasil. Cidades que eram médias viram grandes, outras grandes viram megalópoles, mas todas de modo desordenado gerando um fenômeno nacional de favelização.
Diante destes fatos e de muitos outros é plausível perguntar: quem ganhou com a ditadura no Brasil? A resposta não é simples, mas é possível apontar alguns elementos:
No campo econômico, com a chamada Modernização Conservadora (crescimento com concentração da renda), de um modo geral o grande capital foi beneficiado na desigual relação com o trabalho, pois as greves eram proibidas e severamente reprimidas.
No campo das comunicações: a globo se tornou um dos maiores grupos de comunicação do mundo, sob as asas da ditadura à qual foi fiel até o fim (só nos últimos dias incluiu em seus telejornais os gigantescos comícios que a campanha das “Diretas Já” realizou Brasil afora em 1984). Nos estados, a ARENA (que depois virou PFL e tantos outros partidos) teve suas lideranças agraciadas com muitas concessões de rádio e TV). Importante lembrar que este forte mecanismo de poder (formação da opinião pública) ainda hoje funciona ativamente e nas mãos dos mesmos agentes.
Na política, as oligarquias estaduais tradicionais rapidamente se acomodaram ao novo poder, mesmo que com ajustes no bipartidarismo, por meio do surgimento de facções do partido da ditadura. Para acomodar facções rivais nos estados foram criando subdivisões da ARENA (nome bonito: Aliança Renovadora Nacional): Arena 1, Arena 2 e até Arena 3.
A história do mundo é farta em exemplos de países que abortaram experiências democráticas em construção, em função de suas contradições, e enveredaram pelo caminho tortuoso e incerto do autoritarismo. Este caminho, além de não entregar o prometido (desenvolvimento e combate à corrupção) quase sempre conduziu o processo político e social a dolorosas rupturas entre classes sociais de uma mesma nação e também à guerra entre países, como bem atesta o “banho de sangue” a que o nazi-fascismo conduziu a Europa e boa parte do mundo durante a Segunda Guerra Mundial.
- Merlong Solano é deputado federal PT-PI
- Foto – Gabriel Paiva