No ano passado, os sinais já alertavam.
O estrangulamento orçamentário do CNPq, as ameaças à integridade institucional das principais agências de fomento à ciência no Brasil (CAPES, CNPq, FINEP), o assédio à autonomia das universidades, tudo indicava que uma maligna tendência no cenário mundial — o ódio às ciências — tinha finalmente chegado ao poder no Brasil.
Sabemos que o terraplanismo, o negacionismo climático e outras tolices assemelhadas encontram na internet internacional fluxo seguro.
Campanhas contra a vacinação ou pela abstinência sexual. Afirmativas de que Hitler era de esquerda ou de que não houve ditadura militar no Brasil. Alegações em favor da supremacia branca e da inexistência da categoria social de gênero.
Toda sorte de bobagens proclamadas em português, inglês, em francês, em espanhol, em alemão. E provavelmente também em hindu, em persa, em mandarim…
A trágica singularidade brasileira não está em participar desta orgia de imbecilidades.
Está em o atual governo transferi-la para o comando de posições estratégicas na gestão das políticas públicas: educação, relações exteriores, meio ambiente, direitos humanos e, agora, ciência e tecnologia.
O desgaste do Brasil no cenário internacional (tanto no campo diplomático como no da opinião pública) é consequência direta da ideologização exacerbada de funções para cujo desempenho se requer precisamente preparação técnica, capacidade de exercer a representação pública com decoro e respeito à pluralidade política.
A indicação para a presidência da Capes de Benedito Aguiar (o ex-reitor do Mackenzie, além de adepto do criacionismo, defende sua disseminação já na educação básica) só pode ser classificada como um disparate da mesma ordem que as desastradas demissões praticadas na Casa Rui Barbosa.
Nas duas situações, substituem-se pesquisadores de competência comprovada e reputação reconhecida por pessoas incapazes de sequer compreender o trabalho que têm a missão de desenvolver.
A presença de um criacionista confesso e programático na presidência da Capes confronta a Constituição Brasileira que veda que o estado favoreça, como política pública, a disseminação de uma crença religiosa sobre qualquer outra.
Além disso, como já observado por associações científicas e por tantos intelectuais renomados, o criacionismo é, do ponto de vista científico, tão plausível quanto a afirmativa de que a terra é plana.
Portanto, o risco de torná-lo foco de recursos da agência, que já são esse ano 33% menores do que o montante alocado ano passado, é uma ameaça real ao desenvolvimento das ciências e à formação de pesquisadores no Brasil.
A essa afronta, de envergadura, somam-se outras menores:
portaria reduzindo as possibilidades de intercâmbio internacional dos pesquisadores (limitando viagens para participação em congressos), revogada agora em 07 de fevereiro;
dificuldades para nomeação de professores e técnicos das universidades, devidamente aprovados em concurso e aguardando integração nos quadros profissionais das instituições;
ofensas malucas sobre a “balbúrdia” nos campi, caracterizando momentos pontuais da convivência acadêmica como situações típicas do ambiente de trabalho na educação superior pública…
Deprimente.
O aspecto mais lamentável dessa chuva de trapalhadas é o profundo desentendimento pelo governo e pelos governantes do que constitui a investigação científica como prática social: uma exposição continuada e estruturante de toda investigação à crítica; à revisão pelos pares; à construção coletiva (e sempre temporária) de certezas e consensos.
Tudo isso extrapolando os limites do departamento, da instituição, do país. Nos melhores casos, até da disciplina.
Por si mesma, a ordem científica oferece vacinas contra adeptos. Não que esses não existam. Entretanto, é difícil que resistam num ambiente de tantas avaliações cruzadas.
Para prosperar, esse tipo de desenvolvimento requer processos estáveis e de longo prazo tanto para a investigação como para a formação dos investigadores.
Como também requer uma política regular e previsível de investimento público com a mesma grandeza que outras potências internacionais (como a China, os Estados Unidos, a Coreia, a Alemanha…) vêm praticando há décadas. E com êxito.
O vírus da anticiência, vetor de grande letalidade (física e metafórica) no mundo, no Brasil poderá gerar uma hecatombe.
Primeiro, porque já entramos com atraso na competição científica mundial.
Não obstante a argúcia visionária dos pioneiros da década de cinquenta do século passado, só no limiar do século XXI nos atrevemos a massificar a educação universitária;
E ainda assim, o fazemos com grande insuficiência, em termos comparativos até com nossos vizinhos da América Latina.
Afinal, as potências científicas contemporâneas deixam patente o quanto a liderança intelectual demanda não só massa crítica como diversidade social no quadro de pesquisadores.
Em segundo lugar, a economia contemporânea, não por acaso, tem sido denominada “economia do conhecimento”.
Despriorizar políticas de pesquisa e de formação de pesquisadores nesse momento é resvalar numa disposição impatriótica e, inescapavelmente, suicida.
No momento em que escrevo, todas as manchetes nacionais e internacionais tratam do risco de uma pandemia provocada pelo coronavírus.
Isso devia nos fazer lembrar, como argumenta Steven Pinker no jovem clássico “O Iluminismo Agora”, de 2019, “o conhecimento científico erradicou a varíola, uma doença dolorosa e desfiguradora que só no século XX matou 300 milhões de pessoas”.
O potencial de defesa da vida que podemos esperar da ciência, por si só, deveria engendrar sua defesa por todos aqueles que cultivam valores benignos.
Mas há um elemento a mais pelo qual lutar: pela liberdade de pensamento, pela insubordinação intelectual diante de toda autoridade e pela ampliação da esfera pública que daí resulta como direito de todos à participação.
Há, portanto, boas razões pelas quais devemos ativamente trabalhar pela erradicação do vírus da anticiência, risco real à democracia, à justiça e ao desenvolvimento de nosso país.
- Margarida Salomão é deputada federal PT-MG; foi reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Artigo publicado originalmente no Viomundo.