O editorial da Folha fala em “impulso gastador irresponsável do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT)”. Não ouse perguntar onde está esse “impulso irresponsável”. O editorialista não saberá dizer. E, se disser, terá que mencionar os benefícios concedidos ao setor com a desoneração da folha, a isenção de ICMS aos exportadores agrícolas e de commodities, às jogadas da Ambev com o chá de Guaraná da Zona Franca, a engenharia fiscal desproporcional de grandes grupos. A palavra gastança é repetida por 10 entre 10 jornalistas medíocres, que apontam saúde e educação como escoadouros de desperdício.
Aliás, em um caso raro, há uma belíssima reportagem de Mateus Coutinho e Felipe Coutinho, na UOL, mostrando a hipocrisia dos críticos da gastança.
– a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil criticou a gastança, mas com isenções de R$ 59,7 bilhões.
– o setor de combustíveis critica a gastança e recebeu incentivos de R$ 31,1 bilhões
Na Educação, há infraestrutura precária no ensino médio, falta de recursos para as universidades e falta de materiais didáticos. Fornecer o básico é gastança?
Há falta de recursos para transporte público, saneamento básico, assistência social. A maioria dos professores da rede pública federal não têm reajuste desde 2019; os servidores do INSS estão com os salários congelados desde 2017.
Onde está a gastança? O orçamento total das Universidades Federais para 2024 está em R$ 6,2 bilhões. Indague desses gênios do senso comum onde está a gastança e ninguém conseguirá identificar.
Para 2024, o pagamento de juros da dívida pública está previsto em R$ 740 bilhões, ou 6,9% do PIB. Em 2023, com a Selic média em 13,25%, os juros da dívida pública chegaram a R$ 729,9 bilhões. Se a Selic estivesse em 7%, os juros teriam sido de R$ 597,7 bilhões, redução de R$ 132,2 bilhões em relação ao que foi pago.
Para efeito de comparação, em 2024 o orçamento previsto é de:
R$ 231,3 bilhões para Saúde;
de R$ 82,9 bilhões para Educação;
de R$ 106,1 bilhões para Infraestrutura.
Só esse diferencial de juros equivale a 7 vezes o que é pago para todas as universidades federais.
Aí vem os idiotas da objetividade alegar que os juros são altos porque o risco de inflação é alta ou há ameaça de déficit público, a tal da gastança. E ainda soltam matérias enormes denunciando as fakenews das redes sociais.
Analise a taxa básica de juros, a inflação e o resultado nominal das contas públicas nas principais economias europeias e compare com as brasileiras.
País | Taxa básica de juros | Inflação (últimos 12 meses) | Resultado nominal das contas públicas (% do PIB) |
Alemanha | 0,00% | 7,90% | -2,30% |
França | 0,25% | 5,80% | -1,70% |
Itália | 1,00% | 6,00% | -7,20% |
Espanha | 1,25% | 8,70% | -5,40% |
Holanda | 0,50% | 9,60% | -1,10% |
Portugal | 1,00% | 9,20% | -3,00% |
Grécia | 0,75% | 9,10% | -7,50% |
Bélgica | 0,50% | 8,60% | -2,80% |
Áustria | 0,00% | 8,20% | -1,90% |
Finlândia | 0,50% | 5,20% | -1,50% |
Não apenas isso. Compare as taxas de juros internas do crédito pessoal com as da França, por exemplo:
Taxas médias: No Brasil, a taxa média do crédito pessoal em dezembro de 2022 era de 30,1% ao ano, enquanto na França era de 3,9% ao ano em maio de 2024.
Compare as taxas médias de outros países com a inflação anual:
País | Taxa média anual de juros (%) | Inflação anual (%) |
França | 3,9 | 5,8 |
Suíça | 4,5 | 2,5 |
Luxemburgo | 4,7 | 5,1 |
Finlândia | 4,9 | 2,3 |
Holanda | 5,1 | 8,8 |
Alemanha | 5,3 | 7,9 |
Irlanda | 5,7 | 5,9 |
Portugal | 5,9 | 9,2 |
Bélgica | 6,1 | 10,5 |
Áustria | 6,3 | 8,2 |
Ou, então, o custo da dívida pública.
País | Títulos | Taxa de juros (Ano) |
Alemanha | Bund (10 anos) | 2,12% |
França | OAT (10 anos) | 1,78% |
Itália | BTP (10 anos) | 3,83% |
Espanha | Bono (10 anos) | 2,67% |
Portugal | OT (10 anos) | 3,12% |
Holanda | State Bond (10 anos) | 1,87% |
Bélgica | OLO (10 anos) | 2,25% |
Grécia | Greek Government Bond (10 anos) | 4,15% |
Irlanda | 10-Year Government Bond | 1,98% |
Áustria | AT10Y (10 anos) | 2,31% |
E aqui, os títulos brasileiros:
Títulos Prefixados:
Tesouro Prefixado 2025 (TPRE 25): 5,85% ao ano
Tesouro Prefixado 2026 (TPRE 26): 6,20% ao ano
Tesouro Prefixado 2027 (TPRE 27): 6,45% ao ano
Tesouro Prefixado 2030 (TPRE 30): 6,70% ao ano
Títulos Pós-Fixados:
Tesouro Selic 2025 (TSEL 25): + 1,15% ao ano + Selic
Tesouro Selic 2026 (TSEL 26): + 1,20% ao ano + Selic
Tesouro Selic 2027 (TSEL 27): + 1,25% ao ano + Selic
Tesouro Selic 2030 (TSEL 30): + 1,30% ao ano + Selic
Títulos IPCA:
Tesouro IPCA+ 2029 (TIPR 29): + 5,76% ao ano + IPCA
Tesouro IPCA+ 2035 (TIPR 35): + 5,50% ao ano + IPCA
Segundo os estudos do professor Ladislau Dowbor, 82% do estoque da dívida de R$ 7 trilhões são resultado da dinâmica de juros sobre juros, não da gastança. Não apenas isso. Segundo seus cálculos, a taxa média de juros para pessoas jurídicas está entre 21% e 23% ao ano, o que significa 3% do PIB drenado para os financistas. Outros 10% são representados pelos juros das famílias; 6% são de evasão fiscal e 6% de renúncias fiscais; e o crédito rotativo está entre 86% e 100% ao ano. É um dinheiro esterilizado, que serve apenas para acumulação – muitas vezes de capitais externos – não volta para a produção na forma de investimentos.
O dinamismo da economia reside na capacidade do setor privado – famílias e empresas – de poupar para consumir ou investir. Todo esse potencial, que poderia gerar um mercado de consumo robusto, é drenado para os juros e, atrás deles, para os fundos de investimento, muitos deles no exterior. E esses recursos não revertem em novos negócios, novas empresas, novos empregos.
E vem os idiotas da objetividade falar em gastança.
Ontem, Lula fez a mais relevante afirmação de princípios de seu governo: não se buscará o equilíbrio fiscal sacrificando os mais fracos, retirando a vinculação da Saúde e da Economia.
Falta, agora, a montagem da estratégia de resistência, que passa pelo investimento gerencial pesado nas frentes de desenvolvimento que se apresentam ao país: de industrialização e transição energética, além de programas voltados para o fortalecimento da pequena e micro empresa e da inovação.
O grande salto do país passa pela transição da poupança rentista para o investimento financeiro – , entendido o investimento em atividades produtivas. Faz-se isso de suas maneiras:
1- Baixando vigorosamente a taxa Selic, hoje em dia nas mãos de um grupo sabotador, em um caso inédito de presidente de Banco Central candidatando-se a Ministro de um governo de oposição e tendo conta offshore;
2- montagem dos planos de industrialização para abrir espaço para que os recursos financeiros troquem o rentismo pelos investimentos reais.
E grupos de trabalho não significam apenas conselhos consultivos vagos, mas técnicos e representantes da sociedade civil elaborando cronogramas, definindo funções, prazos e metas.
Publicado no site GGN