Quando o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain desembarcou em Londres no retorno da Conferência de Munique, em 1938, trazia em mãos um acordo que acreditava ser um grande negócio. Frente a mais uma incursão alemã, agora na Tchecoslováquia, decidiu ceder a Hitler, sem resistência, o direito a territórios naquele país, em troca de uma promessa do fim da sua campanha militar. Winston Churchill sabia, aquilo não podia dar certo, e vaticinou: “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terás a guerra”.
Nos três anos anteriores, Hitler descumpriu o Tratado de Versalhes, montou uma potente máquina de guerra, anexou territórios estrangeiros, depôs o governo da Áustria, apoiou com seu exército o golpe militar de Franco na Espanha, aliou-se ao regime fascista de Mussolini – que massacrava a Etiópia com armas químicas –, e iniciou a perseguição a judeus com as “Leis de Nuremberg”.
A cada um dos acontecimentos, a reação dos democratas da Inglaterra e França foi o protesto diplomático, o desagravo público. EUA, nem isso. O excessivo comedimento se amparava, primeiramente, numa subestimação de um líder caricato; depois, no temor de iniciar uma nova guerra. Hitler deu de ombros às palavras de repúdio, e ninguém lhe impediu de seguir à diante.
É preciso que a história nos sirva de farol. A frouxidão dos democratas pavimentou a ascensão de Hitler. Sua marcha autoritária não se iniciou com a invasão da Polônia, em 1939 – fato que marcou o início da 2ª Guerra Mundial –, mas em 1932, quando tornou-se primeiro-ministro no voto popular. O golpe de Bolsonaro segue o mesmo curso.
Se Hitler apostou no imobilismo das democracias que não lhe frearam, Bolsonaro se vale do “fatalismo democrático” – como conceituou o pensador francês Alexis de Tocqueville –, um perigoso consenso de que a democracia é uma conquista civilizatória irrevogável, uma falsa percepção que imobiliza. Desde que assumiu, o presidente segue com suas aproximações sucessivas rumo à deterioração dos freios e contrapesos democráticos, já tão desmoralizados.
Entre os democratas, soma-se ainda o imobilismo dos que creem que a comunidade internacional não reconheceria um golpe por aqui. O Afeganistão, infelizmente, nos alerta do contrário: EUA preferiu tolerar a escravização de mulheres em pleno século XXI porque sua prioridade era investir em desenvolvimento tecnológico para enfrentar a guerra comercial com a China; essa, por sua vez, reconheceu o Talibã sob argumento da autodeterminação dos povos. Quem vai lutar pela democracia no Brasil são os brasileiros.
Durante todo seu governo, Bolsonaro esticou todas as cordas que tinha nas mãos. Ele tenta forçar uma situação, criar pretexto para dar um “contragolpe”. Já foi um pedido da oposição para apreender o celular do presidente (como nos narrou matéria “Vou Intervir”, de agosto/20, da Revista Piauí), no caso da indicação do delegado-chefe da Polícia Federal para barrar a investigação dos crimes de sua família.
Já foi também a decisão do Supremo Tribunal Federal, em março deste ano, de negar pedido de Bolsonaro contra decisões de governadores e prefeitos na gestão da pandemia. Como tornou público o ex-ministro da Justiça Raul Jungmann, na ocasião os comandantes das três forças militares entregaram seus cargos por se negarem a cumprir ordem desvairada do presidente: sobrevoar o Supremo em voos rasantes, para estilhaçar vidros e intimidar. O bode na sala agora é o voto impresso e a atuação do STF contra as mentiras do presidente sobre o processo eleitoral.
Nessas sucessivas crises, nada fizemos, além de notas de repúdio, editoriais em jornais e muita fumaça. Já são mais de 35 crimes e 132 pedidos de impeachment, nada parece ter consequência. Consolidou-se a normalização do absurdo, uma dissonância cognitiva que resulta, hoje, em uma perda do senso de urgência de parte considerável da população; que se anestesia pela repetição. Afinal, o dia 7 é nossa invasão à Polônia ou ainda teremos vestígios de democracia no dia seguinte? Todas os sintomas são do grave risco que corremos, mas não há quem possa responder essa pergunta.
O jornalista austríaco Stefan Zweig, judeu que fugiu para o Brasil após a invasão da Alemanha, descreve em sua obra como Hitler testava uma “pílula de maldade de cada vez”. Tinha método. Ele esperava a reação e soltava outra dose, até que se corroessem as defesas institucionais. “Bastava Hitler pronunciar a palavra ‘paz’ para entusiasmar jornais e fazê-los esquecer de seus atos passados.” O jornalista relata a dor de rememorar o passado e ver que havia janelas de oportunidade para agir, que se fecharam enquanto procuravam a moderação de Hitler.
Se há algo que podemos aprender com a história é a necessidade de retomarmos as rédeas do processo, imediatamente. Até para que os democratas dos países desenvolvidos façam pressão e constranjam seus governos a tomar posição, é preciso que aqui haja gente nas ruas. Milhões. Não precisamos ter dúvidas sobre o que fazer, e para que as pessoas entendam a urgência do momento, a luta pela democracia não pode ser somente da esquerda.
É preciso que as ruas deixem inequívoca chancela à ação das instituições contra quem atentar a democracia. Ao presidente e seu séquito de estrelados fardados que enchem os bolsos enquanto o país desmorona: dessa vez não haverá anistia, quem cometer crimes irá para a cadeia. Aos oficiais que garantirem a democracia, os senhores terão posição importante no futuro do país, que vai exigir das Forças Armadas extremo profissionalismo e respeito às instituições da República.
Não há hipótese de convivência democrática nem margem para negociar com quem, no poder através da democracia, tem a obstinação de acabar com ela. Tudo que é inadmissível foi feito e admitimos. Infelizmente, a nossa demora já tem inexorável consequência: um genocida conduziu o país durante a mais grave crise de saúde pública que já vivemos. Chegaremos a 600 mil mortos, famílias que choram sem sequer conseguir enterrar os corpos. Uma dor infindável, que marcará nossa geração. Uma tragédia evitável.
À pandemia se sucede uma crise econômica grave, que exige do governo decisões difíceis em favor de interesses coletivos; não tomadas têm gerado fome e miséria. Se impeachment tem rito constitucional, é necessário começar imediatamente. Cada dia que perdemos é um passo ao abismo. A boa notícia é que nós, democratas, somos ampla maioria. É irmos às ruas e não haverá tentativa de golpe que dure uma tarde. Falta o gesto dos líderes que têm o poder de construir consensos, a união que precede a onda. Sejamos mais Churchill e menos Chamberlain.
Jorge Solla é deputado federal (PT-BA)