O dia 1º de abril de 1964 amanheceu com tanques de guerra circulando nas principais ruas do país. Soldados perseguiam os que tentavam reagir contra o golpe que se instalava no país, precedido de uma ampla campanha desencadeada por instituições golpistas apoiadas por setores da mídia. O alvo direto: a deposição do presidente João Goulart. O pano de fundo: deter as reformas em andamento que tornariam o brasil um país mais justo: a reforma do ensino, a reforma agrária e a reforma econômica, baseada principalmente na lei que taxava a remessa de lucros para o exterior.
O Brasil mergulhou num pesadelo disfarçado por campanhas ufanistas que escondiam a cruel realidade dos porões do golpe: prisões ilegais, perseguições de todo o tipo, tortura como método e assassinatos. Mensagens anunciando um Brasil grande que disfarçavam a censura aos artistas, a repressão aos trabalhadores, as cassações de parlamentares que se insurgiam contra o autoritarismo. Centenas tombaram nos porões dos aparelhos repressivos. Outros ainda carregam no corpo e na alma as marcas das torturas mais ignóbeis. Milhares foram perseguidos, cassados, demitidos ou exilados. Gerações de brasileiros que contribuiriam para o crescimento do país foram excluídos da vida nacional por razões políticas.
O país reagiu. A luta pelas liberdades democráticas tomou conta das ruas. A partir do ABC paulista, trabalhadores desafiaram a exploração nas fábricas. Trabalhadores sem terra desafiaram o modelo agrícola excludente. Estudantes se rebelaram contra a repressão no ensino, lutadores sociais reivindicavam uma anistia ampla. A ditadura desmoronou.
A noite durou 21 anos, mas os pesadelos nos assaltam até hoje. A transição da ditadura para a democracia realizou-se com base no esquecimento. Enquanto outros países que viveram traumas políticos se reconstruíram a partir da preservação da memória, a produção do esquecimento constrói uma narrativa ambígua daqueles anos tenebrosos e essa profunda distorção histórica coloca o Brasil de hoje no impasse que ele se encontra.
O cargo de presidente da República é exercido por alguém que nunca negou sua condição de entusiasta da ditadura, adepto da tortura admirador de ditadores sanguinários e de assassinos que impunemente prestaram seus ignóbeis serviços durante o regime militar. No momento atual em que se sente acuado pelas reações de diversos setores da sociedade aos desmandos e à incompetência de seu Governo para enfrentar os problemas nacionais e proteger a população da terrível pandemia que nos assola, Bolsonaro acena com os fantasmas autoritários com insinuações criminosas, o que significa agredir a democracia, ofender a Justiça e desdenhar a liberdade conquistada pela luta dos brasileiros.
Enquanto o governo argentino promove uma ampla atividade para registrar os 45 anos da implantação da ditadura assinalando a brutalidade daquele período e unindo a nação contra qualquer possibilidade de aventura golpista, o presidente do Brasil comporta-se como um saudosista do período das trevas e isso é inaceitável. Ao mesmo tempo, observamos com receio a crescente partidarização de setores das Forças Armadas ocupando espaços cada vez maiores na estrutura administrativa, num crescente e preocupante processo de militarização do Governo. As Forças Armadas têm um papel importante na sociedade brasileira claramente definido pela Constituição Federal e a ela devem obediência. Portanto, delas se espera equilíbrio e bom senso para repudiar as insinuações totalitárias propagadas pelo presidente.
Golpe não se comemora, mas é importante que esta data desperte nos brasileiros a necessidade de compreender o que houve naquele período, as marcas perversas que a ditadura civil-militar-midiática ainda provoca na sociedade brasileira como um entrave para que possamos consolidar o processo democrático. Que as provocações de Bolsonaro encontrem no povo brasileiro uma resposta vigorosa: ditadura nunca mais!
Henrique Fontana é deputado federal (PT-RS)
Publicado originalmente no Sul 21