Em artigo publicado neste sábado (31), o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad critica o ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua agenda neoliberal. “A julgar pelos até aqui tímidos resultados da agenda estatal em defesa da concorrência bancária, a atuação daquela honrada casa de lobby vem dando certo”, aponta. “O spread bancário, que espolia empreendedores e consumidores, continua sendo entre nós um dos mais altos do mundo, apesar das inúmeras medidas tópicas que vem sendo tomadas”, afirma.
Leia a íntegra do artigo:
“A Febraban é uma casa de lobby muito honrada, o lobby é muito justo. Mas tem que estar escrito na testa, ‘lobby bancário’, que é para todo mundo entender do que se trata. Inclusive financiando estudos que não têm nada a ver com a atividade de defesa das transações bancárias. É importante dizer isso. Financiando ministro gastador para ver se fura teto, para ver se derruba o outro lado” (Paulo Guedes).
Como se vê, o ministro da Economia está perdido. Em audiência pública no Congresso, sugeriu que a honrada casa de lobby dos bancos, a Febraban, estaria financiando estudos para favorecer o ministro fura-teto-de-gastos, seu desafeto, Rogério Marinho. O portal UOL, em seguida, apurou que o tal estudo “não aponta estouro de gastos e apoia a política liberal do governo”.
A ciência política já havia notado que o lobby no Brasil é, num certo sentido, impossível. O lobby pressupõe uma diferenciação entre a esfera pública e privada que aqui não existe. À indiferenciação dessas esferas dá-se o nome de patrimonialismo, grande entrave a qualquer projeto de desenvolvimento.
O que muitos cientistas políticos não percebem, porém, é que há duas manifestações do fenômeno: uma, arcaica, quando os agentes públicos (estamentos) participam ativamente da vida econômica e, a partir da “posse” do aparato estatal, privatizam parte da riqueza nacional; outra, “moderna”, quando empresários, por meio de prepostos, tomam posse (de setores) do aparato estatal e potencializam os ganhos de sua atividade particular. O Brasil imperial, grosso modo, pode ser visto como o início do período de transição de uma forma a outra.
O que aquela honrada casa de lobby quer afinal? Furar o teto?
Claro que não. De um lado, os credores do Estado querem garantir a parcela – de preferência crescente – da receita de impostos destinada ao pagamento de juros da dívida pública. O teto de gastos, portanto, os favorece. Mas, de outro lado — e isso nem sempre é notado —, os bancos querem se proteger da ação reguladora do Estado, exercida particularmente pelo Banco Central.
A julgar pelos até aqui tímidos resultados da agenda estatal em defesa da concorrência bancária, a atuação daquela honrada casa de lobby vem dando certo. O spread bancário, que espolia empreendedores e consumidores, continua sendo entre nós um dos mais altos do mundo, apesar das inúmeras medidas tópicas que vem sendo tomadas.
E a única mudança estrutural proposta por Guedes, a independência do Banco Central, vai justamente ao encontro do que deseja a honrada casa de lobby que ele ataca, a Febraban.
Cabe, entretanto, perguntar: independência em relação a quem?
Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.
Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo, em 31 de outubro de 2020