Em mais uma investida antidemocrática, o governo ilegítimo de Michel Temer está empenhado em promover um retrocesso sem precedentes na educação brasileira. Desta vez, o alvo é toda a política de educação especial que foi elaborada sob um entendimento inclusivo e que, nos últimos dez anos, permitiu ao Brasil – a partir de iniciativas dos governos Lula e Dilma – romper paradigmas nessa área e avançar, enormemente, em muitos resultados.
Sob o pretexto de “atualizar” a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), em vigor desde 2008, o Ministério da Educação (MEC) põe em xeque um modelo de vanguarda que garantiu o acesso de alunos e alunas com deficiência ao ensino regular comum e, de forma concomitante, ao atendimento educacional especializado.
Agora, toda essa política pode sofrer um revés a partir de uma proposta que indica a retomada de um modelo excludente: em vez de incluir, vai segregar. “Não se trata de uma atualização, se trata de uma mudança profunda com relação à concepção de educação especial e de sistema educacional inclusivo, apontando para um grande retrocesso”, explica Claudia Dutra, que foi secretária de Educação Especial do Ministério da Educação, entre 2003 e 2013.
Uma das críticas feitas por acadêmicos e por representantes de entidades que lidam com educação especial é o fato de o governo Temer – além de não dar transparência às mudanças que pretende fazer – elaborar sua proposta sem ampla participação e sem o necessário debate democrático entre as partes interessadas. Tudo o que se sabe dessa ideia de “reforma” foi apresentado em meados de abril, durante reunião organizada pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do MEC, em Brasília.
De forma contrária a esse tipo de construção, a política inaugurada em 2008 nasceu de um movimento diverso e participativo, com a contribuição de pesquisadores, educadores, pessoas com deficiência, familiares, entidades, operadores do direito e ativistas de movimentos pró-inclusão. “O que acontece agora é um procedimento equivocado, sem ampla participação”, critica Claudia Dutra, que atuou diretamente na elaboração e na implementação da PNEEPEI.
O que existe de mais avançado na política atualmente em vigor é que ela conseguiu superar o modelo educacional anteriormente implementado no Brasil, que se baseava, sobretudo, na oferta de vagas em classes ou escolas especiais. A superação dessa fórmula ocorreu a partir de um novo entendimento, segundo o qual a educação especial deveria ser oferecida como algo complementar ou suplementar ao ensino comum, e não em sua substituição.
Para dimensionar o impacto dessa política, basta olhar para o índice de acesso inclusivo, que era de apenas 24%, em 2003, e passou para 81% em 2016 – um salto que só foi possível graças à implementação da PNEEPEI. “O que existiu nos últimos anos foi uma verdadeira revolução em termos de investimento público para que a inclusão ocorresse. Não podemos perder esse processo de implantação e retroceder a um modelo anterior”, alerta Claudia Dutra.
Desarticulação – Por trás da suposta necessidade de atualização apontada pelo governo Temer, o que está em curso é, na verdade, uma tentativa de desmonte dessa política. Essa avaliação é referendada em análise produzida pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp), em parceria com outras instituições.
No documento em que consta essa análise, há uma reação clara contra essa desarticulação: “Precisamos, urgentemente, nos conscientizar de que os tempos de mudança não podem ser obstados por cortes abruptos, como o proposto contra a PNEEPEI. É preciso agir com inteligência e muito respeito ao que vivemos hoje, seja em relação aos grandes avanços ou em relação aos desafios trazidos pela inovação da PNEEPEI”.
Entre os avanços dessa política, vale ressaltar que ela, além de garantir o apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino, assegurou a implantação de 42 mil Salas de Recursos Multifuncionais para a realização do atendimento educacional especializado nas escolas regulares. Também destinou recursos para projetos de acessibilidade em 57 mil escolas públicas, além da aquisição e entrega de 1.874 ônibus para o transporte escolar acessível.
Permitiu ainda a implementação de programas de formação continuada de professores, atendendo a cerca de 100 mil educadores. Ainda como exemplo de inovação, mudou a lógica do financiamento, instituindo um duplo aporte de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Isso garantiu valores adicionais para o atendimento educacional especializado dos estudantes matriculados em escolas regulares.
Contra tudo isso, há evidências hoje de que o MEC cessou os recursos para os sistemas de ensino em termos de acessibilidade, de formação de professores e, especialmente, de implantação das salas de recursos. Tudo isso sob a alegação de que essa política precisa ser avaliada. “O MEC, nesses últimos dois anos, não deu sequência à implantação de salas de recursos. Não será cessando qualquer tipo de apoio aos sistemas de ensino que a política vai melhorar”, alerta Claudia Dutra.
Embora concorde que haja necessidade constante de avaliação, ela defende que esse monitoramento seja seguido de permanente apoio para aprimorar recursos e avançar na implementação da política de inclusão, justamente para evitar retrocessos. “Praticamente dobramos a matrícula de pessoas com deficiência nesse período. De cerca de 504 mil matrículas, passamos a ter, segundo o último Censo Escolar, mais de 1 milhão de matrículas na educação especial”, comemora.
Amparo legal – É tudo isso que pode ser jogado fora agora com uma proposta excludente do MEC que não encontra respaldo legal. É o que argumenta a advogada Claudia Grabois, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Educacional (Abrade), seccional RJ, e ex-presidente da Federação Nacional das Associações de Síndrome de Down.
“Não há nenhuma justificativa para tirar esses estudantes de uma classe comum. As famílias querem educação inclusiva. O que se pretende com essa proposta é direcionar alunos para outra coisa que não existe, porque uma classe substitutiva não seria modalidade, porque não está prevista. O que está previsto na lei é um sistema inclusivo”, explica.
A advogada lembra que a atual Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva foi construída segundo resolução da Organização das Nações Unidas (ONU), que, em 13 de dezembro de 2006, estabeleceu a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência. O objetivo de tal convenção é “proteger e garantir o total e igual acesso a todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, e promover o respeito à sua dignidade”.
Foi a partir dessa convenção, ratificada posteriormente pelo Brasil com status de emenda constitucional, que o MEC, à época, elaborou sua política de educação especial na perspectiva inclusiva. “É a única convenção internacional que foi ratificada pelo Brasil com esse peso e trata justamente dos direitos das pessoas com deficiência”, ressalta Claudia Grabois.
Ou seja, a partir desse marco internacional, o que está previsto na área da educação para os Estados-parte que ratificaram a convenção é estruturar sistemas inclusivos. “Quando a nossa política foi feita, em 2008, o Brasil só era um país signatário, mas naquele mesmo ano ratificou [a convenção] pelo Decreto Legislativo 186/08 e, no ano seguinte, pelo Decreto Executivo 6949/09”, explica.
Mais adiante, em 2015, o Brasil deu um novo reforço a esse entendimento com a publicação da Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/15), que também está adequada à convenção da ONU. Todo esse arcabouço legal trabalha um conceito novo de deficiência, não mais encarada como resultado exclusivo de uma condição física, sensorial ou intelectual da pessoa, mas como resultado das barreiras interpostas a ela.
Em função desse entendimento, Claudia Grabois explica que desarticular a política atualmente em curso no Brasil seria também retroceder nesse entendimento, visto que a educação inclusiva está colocada como meio para romper essas barreiras. “Por isso, a equiparação de direitos e igualdade de condições. E isso se consegue com recursos, com investimento, com inclusão. Não com restrição de direitos. Esse conceito – repetido em 2015 – é mais um motivo para que não haja nenhuma mudança naquilo que vinha funcionando”, defende.
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