Atual gestão quer colocar o Estado a serviço da iniciativa privada.
Antirrepublicana, antidemocrática, antissocial e antidesenvolvimentista. A reforma administrativa do governo federal, apresentada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 32/2020, é uma granada no peito do Brasil. Acompanhado de fake news e visões distorcidas, o texto é uma tentativa de se estabelecer um Estado patrimonialista para colocá-lo à disposição de um presidente da República que busca dominar os órgãos de controle para proteger a própria família.
O que o governo de Jair Bolsonaro pretende, na verdade, a partir da orientação ideológica neoliberal de Paulo Guedes, é promover uma reforma de Estado e, ao mesmo tempo, abafar as discussões sobre uma reforma tributária mais justa, com tributação de grandes fortunas, heranças e de lucros e dividendos. A atual gestão quer é reduzir a atuação do Estado para colocá-lo a serviço da iniciativa privada.
A reforma apresentada propõe uma lógica autoritária na máquina pública. A PEC dá poder ao presidente da República para, por meio de um simples decreto, por exemplo, extinguir órgãos, autarquias e fundações. Além disso, precariza as relações trabalhistas no serviço público ao eliminar o regime jurídico único e adotar contratos temporários e processos seletivos simplificados. Impõe, ainda o fim da estabilidade para o servidor.
O texto dá um cheque em branco para Bolsonaro comandar o Estado como ele tanto almeja. Em uma entrevista recente, o presidente admitiu que os prefeitos precisam ter liberdade para demitir e contratar quem quiserem, ou seja, estabelecendo o Estado do compadrio. Essa é a lógica autoritária bolsonarista. Toda a máquina pública e os servidores passam a ficar nas mãos do gestor, que pode tratar tudo a partir das suas intenções políticas.
Logo após tomar posse, Bolsonaro conseguiu se vingar do fiscal do Ibama que o havia multado, em 2012, por pesca ilegal — o servidor foi exonerado do cargo de chefia. Nunca houve tanta perseguição aos servidores da área de meio ambiente. O presidente também tenta controlar a Polícia Federal para blindar seus filhos, como expôs seu ex-aliado e ex-ministro Sergio Moro. Não é difícil imaginar o que ele faria com todo o serviço público se tivesse esses poderes extremos que tanto deseja.
Os servidores são essenciais para que as políticas públicas cheguem ao cidadão, mas precisam ter autonomia para trabalhar. Eles são nossos enfermeiros, médicos, assistentes sociais e todos os profissionais que agora, por exemplo, estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus. Também são a memória de um país.
No entanto, o governo Bolsonaro prefere tratá-los como inimigos e, nesse sentido, lista diversas falácias para atacá-los. Uma delas é que o Estado está inchado. De acordo com levantamento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) realizado, em 2015, em 30 países, o Brasil tem 12% da sua capacidade laboral atuando no serviço público, enquanto a média mundial é de 21,3%. Outro argumento falso é o de que a máquina pública custa muito caro. A média salarial nos Executivos municipal, estadual e federal — que abarcam 93% dos servidores do país — é de R$ 4.200.
Mais uma mentira é a afirmação de que o Estado é ineficiente. Temos diversas políticas públicas e ações que comprovam a eficiência do serviço público, como a criação dos programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, do Sistema de Administração Financeira (Siafi) e do Tesouro Direto. De acordo com reiterados acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU), as maiores causas de ineficiência estão ligadas às deficiências de planejamento. A PEC nº 32/2020, contudo, não apresenta nenhuma solução para isso.
A proposta do governo também está cheia de lacunas. Diz que só haverá estabilidade nas carreiras típicas de Estado, mas não detalha quais são. Permite a demissão a partir da avaliação insuficiente de desempenho, mas não aponta os critérios. Dispõe sobre o aumento da terceirização, a não ser nas atividades-fim, mas também não faz nenhuma discriminação sobre quais seriam.
Por tudo isso, é fundamental dizer não a essa reforma para que a gente tenha uma nação republicana, transparente e democrática. É preciso retirar as inverdades que têm sido proferidas contra o servidor e, acima de tudo, devemos preservar nosso serviço público para que ele possa, cada vez mais, estar à disposição da população, e não apenas de um presidente da República.
Erika Kokay é deputada federal (PT-DF)
Artigo publicado originalmente em O Globo, em 29 de setembro de 2020.