Em artigo, a deputada Erika Kokay (PT-DF) analisa os retrocessos impostos ao país pelo governo Temer. Em particular, ela analisa a “Escola sem Partido” que retrocede em conquistas importantes dos direitos humanos para a equidade de gênero, raça e orientação sexual. Além disso, quer retirar do processo pedagógico o pensamento crítico, a problematização das desigualdades, das violências sofridas por negros, mulheres, jovens, pobres e LGBTs, impedir a discussão das inúmeras opressões vivenciadas no quotidiano escolar e social. Leia a íntegra:
Lei da Mordaça e a primavera estudantil
*Erika Kokay
No Brasil, o ideário conservador ganhou fôlego e se fortaleceu a partir do processo de golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff, um golpe que ameaça fortemente a democracia, a laicidade do Estado, os direitos sociais e as liberdades individuais e coletivas.
O processo de disputa política e ideológica que estamos assistindo em torno do movimento de ocupação das escolas em todo o País é o retrato das consequências nefastas advindas do Programa “Escola sem Partido”.
A primavera estudantil que floresceu em todo o país tem demonstrado o vigor e a coragem da juventude que ousou se colocar em movimento e enfrentar de forma altiva e aguerrida as medidas autoritárias e restritivas de direitos tomadas pelo governo Michel Temer, em especial, contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 55, ex-PEC 241) e contra a Medida Provisória da Reforma do Ensino Médio.
Se havia alguma dúvida quanto à partidarização dos movimentos que defendem a “Lei da Mordaça”, não há mais. Esses movimentos estão nus. Sob o manto de defender o direito à educação e o direito de ir e vir, agem de forma absolutamente criminosa, espalhando a violência e o pânico na comunidade escolar e estudantil.
Com um viés fascista, agem coadunados com visões político-partidárias de direita e extrema-direita, invadem as escolas ocupadas com armas brancas, coquetéis molotov e bombas caseiras para forçar desocupações e impor sua visão de mundo. Buscam a todo custo criminalizar as ocupações e colocar os demais estudantes contra aqueles que lutam não somente por sua escola, mas por uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos e todas.
São movimentos orquestrados para sufocar a maior e mais potente resistência contra medidas que irão inviabilizar esta geração e as futuras. Agem apoiados por setores fundamentalistas do Congresso Nacional que pisotearam a Constituição e o Estado Democrático de Direito com o intuito de consolidar uma agenda de intolerâncias que tem como princípio a negação da diversidade humana e da pluralidade de ideias.
A “Lei da Mordaça” é o exemplo maior do caráter autoritário da direita e extrema-direita brasileira, pois trata-se exatamente de uma tentativa de controlar os processos pedagógicos e educacionais. Sem dúvida, essa é a iniciativa mais perigosa dessa absurda agenda de intolerâncias em curso no País.
Defensores da “Lei da Mordaça” acusam o corpo docente de praticar “doutrinação política e ideológica”, de veicular “conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas e morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes” ou mesmo de fazerem “propaganda político-partidária em sala de aula”, além de incitar “seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas”.
Sob o argumento de defender princípios como “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”; “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”; “liberdades de consciência e de crença”, o Programa coloca os professores e professoras sob um regime inaceitável de vigilância, além de agredir frontalmente a liberdade docente.
Tal proposta, já aprovada em alguns Estados e municípios brasileiros, tem a ousadia de ir para além de práticas adotadas durante a ditadura militar, quando agentes de Estado cumpriam a tarefa de “vigiar e punir” as vozes dissonantes. Agora, querem promover uma cisão entre educadores e educandos, uma vez que os estudantes terão a tarefa de identificar “ideologias” em seus educadores e denunciá-los. São estudantes assumindo a tarefa de “vigiar e punir”, criando práticas que vão na contramão de uma relação que deve ser pautada pela confiança e reciprocidade. Estamos falando da construção de uma sociedade na qual impera o medo de expor ideias e opiniões. A liberdade, chão insubstituível da existência humana, não será permitida.
Do ponto de vista legal, o Programa é flagrantemente inconstitucional, perspectiva compartilhada pelo Ministério Público Federal, uma vez que ele fere a Constituição Federal ao agredir a inteligência dos docentes e estudantes, negando-lhes o direito inalienável à liberdade, previsto no art. 5º, inciso VI, da CF, que diz ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença…” além de se contrapor aos princípios do ensino, como o direito à “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, conforme art.205, inciso II, da CF; além do seu inciso III, que garante “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas…”; e do inciso V, que prevê a “valorização dos profissionais do ensino”.
O Escola Sem Partido choca-se também com o art. 205 da Constituição Federal quando ele estabelece que a educação traz como objetivo primeiro “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania”. Impossível o pleno exercício da cidadania com um modelo educacional que cerceia a liberdade e não está comprometido com o debate plural e rico de ideias.
Do ponto de vista pedagógico, o Escola Sem Partido enaltece uma perspectiva de ensino mecânica em que o professor transmite conteúdos de forma técnica, sem crítica, contextualização ou problematização. Não por acaso, o grande inimigo de seus defensores é o educador Paulo Freire, demonizado como grande doutrinador, quando na verdade, Freire constituiu todo um modelo de pedagogia para a autonomia e a liberdade, em que educador e educando são protagonistas do ato de educar.
Ademais, o “Escola sem Partido” tem como fundamento a ignorância e a desonestidade intelectual, uma vez que não existe escola neutra, tampouco modelo educacional isento de viés político e ideológico.
Para Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo jamaicano, “ideologia são os referenciais mentais, linguagens, conceitos, categorias, conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e tornar inteligível a forma como a sociedade funciona”.
Portanto, a ideologia está presente nas diferentes formas de ver e conceber o mundo, não somente nos professores considerados marxistas e de esquerda. Quando os ideólogos do “Escola sem Partido” defendem a “não ideologização” em nome de uma pretensa neutralidade, fazem essa defesa a partir de um enfoque político que invariavelmente também está eivado de ideologia.
Na verdade, os teóricos do Programa ao se auto-intitularem neutros e não partidários, querem falsear seu intento de hegemonizar a formação intelectual de crianças e jovens, de estabelecer um modelo de escola de partido único de direita, que professa os valores do pensamento único, dos ideiais econômicos liberais, do individualismo, do consumismo, ao passo que também querem impor um tipo de educação submetida ao fundamentalismo religioso e aos preceitos bíblicos, negando debates fundamentais de direitos humanos, de diversidade religiosa, de gênero e de diversidade sexual nas escolas.
O que o “Escola sem Partido” quer é retroceder em conquistas importantes dos direitos humanos para a equidade de gênero, raça e orientação sexual, quer retirar do processo pedagógico o pensamento crítico, a problematização das desigualdades, das violências sofridas por negros, mulheres, jovens, pobres e LGBTs, impedir a discussão das inúmeras opressões vivenciadas no quotidiano escolar e social.
Querem, em última instância, interromper com o processo de democratização da escola, de florescimento de um modelo de educação que prime pela autonomia, liberdade e diálogo entre os diferentes.
Ignoram que a Educação, como pensava Paulo Freire, não é uma doação ou imposição, mas uma devolução dos conteúdos elaborados pela humanidade e coletados na própria sociedade, que depois de sistematizados e organizados, são devolvidos aos indivíduos na busca de uma construção de consciências críticas frente ao mundo.
É educando pela conscientização do “educando” que Freire fundamenta a união entre educação e o processo de mudança social. É somente nesta perspectiva dialógica e de respeito à autonomia de educadores e educandos que podemos construir outras ideias, comportamentos e práticas sociais, de modo a solidificar uma cultura democrática e participativa. É exatamente esse modelo de educação para a liberdade que o “Escola sem Partido” quer destruir.
*Erika Kokay é deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores do DF e integrante da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara
Artigo publicado originalmente no Brasil 247 em 07 de novembro de 2016
Foto: Gustavo Bezerra
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