Em artigo, o deputado Décio Lima (PT-SC) faz uma reflexão sobre os recentes episódios que levaram a quase 100 mortes brutais em presídios no Brasil e a banalização do mal. Ele cita, dentre outros filósofos, Hanna Arendt, para uma reflexão sobre o mal, que é considerado um enigma da humanidade. “.. o mal se manifesta onde encontra espaço institucional para isso em razão de uma escolha política e se banaliza com o vazio do pensamento. Tudo a ver com os últimos e chocantes episódios protagonizados em nossas plagas”, analisa Arendt.
Leia a íntegra do artigo :
Tempos de banalização do mal
Os recentes morticínios em presídios e manifestações eticamente equivocadas daí decorrentes, em especial por parte de autoridades constituídas (legitimamente ou não), devem nos levar à reflexão acerca da ideia do mal.
O mal é desafiador e sempre se constitui em verdadeiro enigma para a filosofia. Possivelmente foi Kant quem elaborou a noção de “mal radical” como uma predisposição humana. Contudo, certamente foi Hannah Arendt quem resgatou e atualizou o conceito ao falar dos movimentos totalitários do Século XX. É de Arendt o que segue:
“Pode-se dizer que esse mal radical surgiu em relação a um sistema, no qual todos os homens se tornaram supérfluos. Os que manipulam esse sistema acreditam na própria superfluidade quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são os mais perigosos, porque não se importam se estão vivos ou mortos; se jamais viveram ou se nunca nasceram”.
Adicionalmente ela esclareceu que o mal se manifesta onde encontra espaço institucional para isso em razão de uma escolha política e se banaliza com o vazio do pensamento. Tudo a ver com os últimos e chocantes episódios protagonizados em nossas plagas.
Mas seria o “sistema” mencionado por Hannah Arendt uma entidade intangível, fluida embora onipresente? No caso dos massacres, a citação do “sistema” deve nos levar a examinar as questões relativas à aplicação de penas em geral (por vezes tão brandas e em outras tão severas) e ao encarceramento exacerbado em particular.
Pasmem ao saberem que quase 40% do total de presos no Brasil em 2015/16 sequer foram condenados. E mais, o Brasil tem hoje 4ª maior população prisional do mundo em termos absolutos. Só perde para EUA (2,2 milhões), China (1,7 milhão) e Rússia (673 mil).
Existem 607.731 presos no Brasil para um total de 376.669 vagas distribuídas em 1.424 unidades prisionais, o que significa 161% mais presos do que vagas. Além disso, do ponto de vista substantivo (dos valores éticos), qualquer pessoa que visite qualquer um dos nossos presídios ficará chocado com o ambiente absolutamente medieval, desumano e desumanizador.
Aliás, um grande equívoco que se pode cometer é compreender a sociedade dividida entre bons e maus, honestos e malfeitores, e imaginar que é possível suprimir o grau de liberdade de alguns sem afetar todos os demais. Não se trata de “passar a mão na cabeça” do apenado, se trata em ver em todo homem e mulher em primeiro lugar o ser humano. Trata-se de questionar algumas tendências autoritárias e retrógradas (por aderência à usurpação do poder de 2016) que vêm emergindo nos dias atuais.
Nessa linha é lícito citar a banalização da prisão temporária; a custódia antecipada se transformando em norma geral; as propostas de emenda para que a polícia tenha autonomia para prender, mesmo sem autorização de um juiz; a generalização da interceptação telefônica; a inversão da presunção da inocência e todo o leque de caráter arbitrário que as mentes simplistas estão concebendo e apresentando. Enfim, a repressão à criminalidade não pode fundamentar a supressão de direitos em recaída autoritária.
Lembrando o que Darcy Ribeiro dizia em 1982: “se os governantes não construírem mais escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir mais presídios”.
*Décio Lima é deputado federal pelo PT/SC e ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados
(Publicado no Site Brasil 247)