CPI da Covid desvenda envolvimento de coronéis com corrupção

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O aparelhamento do governo federal promovido por Jair Bolsonaro com quadros das Forças Armadas arrasta os militares para o centro dos escândalos de corrupção do futuro ex-presidente. Octavio Guedes, comentarista de política da GloboNews, comparou o depoimento do gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, com o do intermediário da Davati, o cabo da Polícia Militar Luis Paulo Dominguetti, à CPI da Covid. A conclusão foi eloquente.

Enquanto Murillo não fez menção a qualquer patente militar em seu testemunho, em 13 de maio, Dominguetti cita 175 vezes a palavra “coronel” no depoimento prestado em 1º de julho. Além do depoimento do Policial Militar Dominguetti, já era grande o número de militares da reserva e da ativa citados nas investigações envolvendo a compra de vacinas. E a cada dia novos personagens são revelados.

Segundo Murillo, as tentativas de comunicação da Pfizer com o governo foram feitas por canais oficiais. Sem intermediários ou sobrepreço, nenhum coronel surgiu para agilizar as tratativas. Mesmo Élcio Franco, coronel da reserva do Exército que ocupou o cargo de secretário-executivo do Ministério da Saúde de junho de 2020 a março de 2021, foi tratado pelo depoente como “senhor Élcio” ou “secretário-executivo”.

Já nas negociações com a Davati, manchadas por suspeitas de pedido de propina para cobrança de sobrepreço, o intermediário foi o próprio Dominguetti. “Volta e meia aparecia um coronel no enredo, inclusive no encontro que houve o suposto pedido de propina”, comentou Guedes, concluindo: “Pfizer, zero coronel. Vacina picareta da Davati, 175 vezes a palavra coronel”.

Alheio à flagrante deterioração do prestígio dos militares junto à sociedade, no rastro do desastre de seu desgoverno, Bolsonaro “estica a corda” ainda mais do aparelhamento fardado. No dia do depoimento do cabo da PM, entrou em vigor o decreto de Bolsonaro que permite que militares da ativa ocupem cargos civis por tempo indeterminado. O limite era de dois anos, e só podia ser estendido caso o militar fosse para a reserva.

A medida transforma ainda cargos civis em cargos de natureza militar. Assim, passa a ser obrigatório que várias posições em órgãos como o Supremo Tribunal Federal (STF), a Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério de Minas e Energia, e até mesmo empresas estatais, sejam ocupadas por militares.

O líder da Bancada do PT na Câmara, deputado Bohn Gass (RS), apresentou imediatamente um projeto de decreto legislativo (PDL) que suspende a medida de Bolsonaro. Para Bohn Gass, o decreto é uma “manobra infralegal para transformar a natureza jurídica do cargo de civil para militar e, desta maneira, permitir que militares da ativa ocupem cargos civis sem que percam a sua condição de militar e não conte o tempo do devido afastamento das atribuições típicas de militares, acumulando as vantagens da carreira militar ativa com os benefícios do cargo civil ocupado”.

Partido Militar avança sobre cargos

Enquanto o general Eduardo Pazuello foi ministro da Saúde, o número de militares como ministros no desgoverno Bolsonaro foi superior a três dos cinco presidentes da ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo). Cada um tinha na composição de seus ministérios sete nomes das Forças Armadas. Bolsonaro empatava com Costa e Silva (8) e ficava atrás de Castelo Branco, que tinha 12 ministros militares.

Mas a ocupação da Esplanada por militares das mais variadas patentes ocorre em um nível nunca visto antes — são cerca de seis mil quadros da reserva ou da ativa ocupando cargos em variados órgãos públicos. Em abril, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) lançou o dossiê “Militarização do governo Bolsonaro e intervenção nas Instituições Federais de Ensino”, que mapeia o processo.

Organizado pelas pesquisadoras Eblin Farage e Kátia Lima, o documento levanta a presença de militares no governo federal desde o início da gestão até fevereiro de 2021. O dossiê também analisa a militarização das escolas públicas e a intervenção do governo federal na escolha de dirigentes das Instituições Federais de Ensino.

O chefe do Executivo afirma com veemência o seu orgulho em montar uma gestão, em suas palavras, completamente militarizada. A presença de militares em cargos civis, que já não era baixa no governo Temer, de acordo com balanço feito pelo Tribunal de Contas da União, mais do que dobrou em 2020. Isso representa aproximadamente 43% dos cargos comissionados do governo”, aponta o documento.

“É o fenômeno intitulado de partido militar, devido ao funcionamento das Forças Armadas como espécie de partido político tradicional: briga por cargos, base política construída, finalidades políticas, etc”, afirmam as pesquisadoras.

À BBC News Brasil Rafael Cortez, cientista político da Tendências Consultoria Integrada, lembrou que as evidências históricas, que demonstram que a democracia tem uma sobrevida maior quando há um controle civil das Forças Armadas. “Ainda que, por ora não se veja um movimento mais efetivo dos militares no sentido de gerar desgaste democrático, trata-se de uma mudança na correlação de forças que gera preocupação e, se não houver esse controle, certamente representa uma das fontes de risco para a democracia”, argumentou.

“Os regimes políticos são mais instáveis quando não há esse controle. Gerir o monopólio da força não é trivial e não é por um acaso que boa parte dos regimes autoritários do mundo ou regimes com forte instabilidade tem um papel político dos militares bastante efetivo”, acrescentou o consultor político.

Para Christoph Harig, pesquisador da Universidade Helmut Schmidt, em Hamburgo, na Alemanha, e doutor em Estudos de Segurança na Universidade King’s College, em Londres, onde estudou Brasil, “já é problemático ter vários militares da reserva no governo, mas convidar aqueles da ativa afeta diretamente as Forças Armadas como instituição e evidentemente ridiculariza seu suposto papel ‘não partidário’ na democracia brasileira”.

Segundo Cortez, o papel das Forças Armadas deveria ser apolítico. “A partir do momento em que os militares passam a exercer um papel mais político, sofrem desgaste e passam a ser percebidos como atores políticos, não só os da reserva como os da ativa”, explicou.

“Isso gera um choque entre mundos: um que funciona como base na hierarquia e disciplina e outro com base em relações mais horizontais. Não há uma escala formal no universo da política. São dois modus operandi bastante complicados”, prosseguiu. “Boa parte da legitimidade das Forças Armadas é ter esse papel não político.”

“Havia uma expectativa que me parece que não condiz tanto com a realidade de que as Forças Armadas iriam controlar eventuais abusos de Bolsonaro, que imprimiriam um pragmatismo na administração do governo, que também é muito marcada por certa guerra ideológica. Os militares seriam assim um grupo que exerceriam esse poder de veto desses excessos. Essa expectativa não se confirmou”, concluiu o cientista político.

Ao se cercar de militares, Bolsonaro reforça seu mandato ao mesmo tempo em que gera alto desgaste para os militares. A cada denúncia, cresce a percepção de que, ao invés de controlar o ex-capitão, os militares apenas foram cooptados por ele.

Redação da Agência PT

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