A mídia, a classe política e as populações do campo ficaram surpresas com o veto radical do presidente Jair Bolsonaro à Lei Assis Carvalho, que previa ajuda aos agricultores familiares do Brasil durante a pandemia. A surpresa decorreu da extensão do veto, não restando no texto da lei nada mais de substantivo.
Afinal, como justificar esse veto para um setor que produz o alimento dos brasileiros justamente num momento em que se observa forte pressão de alta dos preços dos mantimentos aos consumidores por conta de insuficiências na oferta desses produtos?
Qualquer governante guiado pela supremacia do interesse público poderia, eventualmente, vetar um ou outro dispositivo da lei por considerar algum vício de constitucionalidade ou suposto exagero nas concessões. Porém, vetar uma lei que resultaria no aumento da produção de alimentos e na atenção da sociedade, neste momento sofrido, a extratos da população situados nas faixas da pobreza e extrema pobreza não tem explicações no campo da racionalidade e muito menos da empatia.
Risco alimentar
Antes de explorarmos as reais motivações desse veto, não custa insistir no alerta sobre os atuais riscos para o abastecimento alimentar no Brasil.
Dois rápidos indicadores a respeito. No período de janeiro a julho de 2020, a inflação da “alimentação no domicílio”, foi de 4.9%, ou seja, 10 vezes superior à variação do IPCA Geral (0.46%). Os preços do feijão fradinho, feijão preto, mulatinho e rajado, cresceram, respectivamente, 72, 64, 43 e 36 vezes acima do IPCA geral. Os do arroz, 41 vezes acima; batata 29 vezes e farinha de mandioca, 24 vezes.
Outro indicador para além de preocupante se obtém quando constatamos que em 1977 as áreas de arroz e feijão, juntos, representavam 28.2% da área total plantada com grãos enquanto a soja 21%. Em 2020, arroz e feijão representaram apenas 6.9% enquanto a soja responde por mais da metade da área com grãos (57%).
Lei consensual
Portanto, além da importância crucial da agricultura familiar para rever esse quadro, este segmento tem sido duramente afetado pela pandemia. Metade das famílias de agricultores familiares teve redução nas suas rendas, perdendo, em média, um terço da renda que habitualmente recebiam. Entretanto, conforme o estudo do pesquisador, pouco mais de um terço dessas famílias recebeu o auxílio emergencial.
Então, por que esse veto? A lei foi aprovada depois de ampla negociação com a participação de técnicos dos ministérios da Agricultura, da Economia e da Casa Civil, com encaminhamento de voto favorável por parte do governo e, através de votação simbólica, tanto na Câmara quanto no Senado, expressando o apoio unânime do Parlamento brasileiro. Fica óbvio que o veto não se justificou por incompatibilidade da matéria com aspectos orçamentários e econômicos; muito menos, como acintosamente consta na Mensagem Presidencial, que a lei contraria o interesse público.
Veto ideológico
Inexiste qualquer restrição orçamentária devido ao estado de calamidade Significa dizer, de forma mais clara, que o governo pode elevar o gasto público para além de sua arrecadação formal, além de permitir um maior nível de endividamento bem como descumprimento das regras fiscais.
Também não vislumbramos alguma restrição de natureza econômica. Caso efetivadas todas as medidas previstas na Lei Assis Carvalho, o desembolso total representaria apenas 12% do dispêndio de um mês do auxilio emergencial.
Portanto, não tenhamos dúvida, Bolsonaro introduziu o veto ideológico ao nosso ordenamento constitucional. O veto ideológico é a negação da justiça, da isonomia. Ignora a realidade e nada mais é do que um ato de violência contra alguém, um grupo ou instituição, pelas quais o governante construiu convicções pessoais. É quase como um ato de guerra; o recado de que são considerados inimigos e serão tratados como tal.
Mente doentia
Bolsonaro é homem de uma guerra só. Como se ainda vivesse no período da “guerra fria” encara quem não é de direita, e particularmente quem luta por direitos — a exemplo dos movimentos sociais do campo — como sinônimos de “vermelhos”, “marxistas”, “cubanos”, “chineses”, “bolivarianos”; enfim, como a personificação do mal. É a luta permanente de uma mente doentia contra inimigos ideológicos e imaginários.
Entre as coisas virtuosas da democracia é o fato de as instituições se sobreporem até mesmo à figura do presidente da República com as suas deformações. Creio firmemente que o Congresso deverá restabelecer aos agricultores familiares o tratamento dado a todos os grupos sociais e produtivos vítimas da crise sanitária e econômica provocada pela Covid-19. O veto da democracia ao ódio de classe!
Beto Faro – Deputado federal (PT-PA)
Artigo Publicado originalmente no GGN
Foto: Gabriel Paiva/Arquivo