Beto Faro: O Plano Safra e as punições aos agricultores familiares

No Brasil do governo Bolsonaro, a reforma agrária foi relegada ao limbo das franjas da periferia da agenda política do País. Demarcação zero de terras indígenas e quilombolas, cumprindo-se a desastrosa promessa de campanha do então candidato. Preocupação com o retorno do Brasil ao mapa da fome? É um tema sequer mencionado por qualquer autoridade do governo.

Em meio às ações de desconstrução de políticas públicas específicas para as áreas rurais do Brasil, pelo menos os agricultores familiares, confiantes nos discursos da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, aguardavam com ansiedade o anúncio do Plano Safra 2019/2020. Tinham a expectativa de que pelo menos na esfera do fomento produtivo o governo Bolsonaro viesse a apresentar uma oferta de medidas compatíveis com as funções estratégicas desempenhadas pela agricultura familiar no Brasil. Porém, o anúncio do Plano Safra, em megacerimônia no Palácio do Planalto, mostrou que tudo não passou de mais uma falsa promessa, com ares das célebres fake news, tão cultivadas pelo presidente da República e seu entorno.

Fim da agricultura familiar

É preciso lembrar que, em discurso na solenidade de posse da atual direção da Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater), a ministra da Agricultura disse, sem a menor cerimônia, que o atual governo iria acabar com “esse negócio de agricultura familiar”. Ela afirmou “que o Brasil só tem uma agricultura constituída por pequenos, médios e grandes produtores”.

Portanto, a primeira grande inovação do Plano Safra foi a abolição do termo agricultor familiar, sociologicamente reduzido para “pequeno”, num gesto simbólico que além dos seus efeitos práticos, traduz o perfil ideológico do atual governo – no caso, contra a condição protagonista e de sujeito político da agricultura familiar e camponesa.

Exclusão social

Pela primeira vez no período histórico iniciado ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o agricultor familiar não terá um Plano Safra específico. Foi agora diminuído para “pequeno” nas entrelinhas do plano para o agronegócio.

O mais grave da afirmação ideológica e da decisão anunciada pela ministra foi a sinalização de retorno do processo de exclusão desse segmento social do acesso às políticas públicas. Afinal, o Plano Safra considera “pequenos” os produtores com renda anual de até R$ 415 mil

Talvez a fixação do governo Bolsonaro pelos Estados Unidos tenha levado a sua equipe a definir o pequeno brasileiro pela conversão em reais do limite de renda (em dólar) do agricultor familiar norte-americano. Por exemplo, imagine um “pequeno produtor” no Pará com renda de R$ 415 mil. É óbvio que essa definição foi tomada para permitir o acesso ao Pronaf de médios produtores da base da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), peça central no apoio à eleição de Bolsonaro. A consequência inevitável será a exclusão do crédito de uma gigantesca parcela de agricultores familiares.

Punição à agricultura familiar

Um segundo ponto que chamou logo a atenção na divulgação do ‘Plano Safra’ foi o anúncio feito pela ministra, em tom eufórico, que o pequeno poderia financiar os serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) pelo Pronaf.

Ora, além de uma violação ostensiva ao disposto no Art. 17 da lei agrícola nacional que impõe ao poder público a gratuidade na prestação da assistência técnica e extensão rural aos “pequenos produtores”, a medida veio na sequência dos cortes absolutos feitos por Tereza Cristina nas dotações orçamentárias para a Ater aos assentados e agricultores familiares. Portanto, trata-se, na verdade, de mais um ato punitivo deste governo à agricultura familiar.

Após várias semanas prometendo que as dotações do Pronaf seriam ampliadas e que de forma alguma haveria aumento nas taxas de juros do programa, o Plano Safra promete praticamente os mesmos R$ 31 bilhões da safra anterior, e as taxas de juros passaram de 2.5% e 4%, para 3% e 4.6% – enquanto para os médios produtores foi mantida a taxa de 6%.

Privilégio para o agronegócio

A propósito, os médios produtores tiveram incremento na oferta de crédito, de R$ 6,46 bilhões em relação à safra 2018/2019. De outra parte, os grandes passarão a contar com o acesso facilitado e subvencionado a recursos com fontes de mercado, inclusive, em moeda estrangeira, obviamente, com os riscos cambiais cobertos pelo Tesouro.

A medida de impacto do Plano Safra certamente foi o incremento de 127% nos recursos para as subvenções ao prêmio do seguro rural disponibilizado aos grandes produtores. Será R$ 1 bilhão em subvenções para essa finalidade. Assim, o valor segurado para os grandes produtores passará de R$ 18,6 bilhões para R$ 42 bilhões.

Não vejo problemas no aumento do seguro para os grandes. É legítimo e oportuno porque cada vez mais a atividade agrícola está sujeita aos riscos climáticos que justificariam o montante de recursos. Porém, para os ‘pequenos’, notadamente, das regiões mais pobres do país como o semiárido, o Plano Safra simplesmente reduz do volume de recursos segurado – de R$ 726 milhões para R$ 468 milhões.

Cruzada ideológica

Também precisa ser enfatizado que o Plano Safra, diversamente do que ocorreu até o ano passado, foi absolutamente omisso sobre instrumentos essenciais para os agricultores familiares referentes aos mercados institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o que demonstra, no mínimo, a absoluta falta de prioridade dada por este governo para dois programas vitais para a agricultura familiar.

Por fim, vale frisar que, independente da opção ideológica, é lamentável a “falta de inteligência” neste suposto plano. Ou seja, não se discute a formulação do Plano a partir do papel eventualmente esperado da agricultura para um determinado projeto estratégico para o Brasil. Com efeito, a formulação dos planos se resume ao exercício de como atender às demandas do setor empresarial, e basicamente prover os recursos para o Pronaf no caso da agricultura familiar, tendo em conta o contexto fiscal que restringe as subvenções públicas demandadas, em especial, pelo agronegócio. O mercado determina, e o governo cumpre.

 

* Deputado federal eleito no Pará pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Artigo originalmente publicado no portal Brasil de Fato

Foto – Gabriel Paiva

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