Em artigo, a deputada Iriny Lopes (PT-ES) analisa o debate em andamento no Congresso Nacional sobre a redução da maioridade penal. “Propor a maioridade penal cada vez mais precocemente é no mínimo temerário. Ela tem sido feita por alguns políticos que “vendem” propostas de apelo fácil junto à sociedade, ignorando os dados de criminalidade, bem como o fracasso de nações que adotaram a medida, como os EUA”, diz o texto. Leia a íntegra:
A dor capitalizada e o linchamento legal *
A cristalização de posições favoráveis e contrárias à redução da maioridade penal impede que as pessoas analisem os dados de forma racional e objetiva. A experiência de países que encarceraram adolescentes em prisões de adultos e agora admitem que, ao contrário do que imaginavam, os jovens tornaram-se mais violentos acende a luz vermelha (ver reportagem do The New York Times de 11 de maio de 2007).
Propor a maioridade penal cada vez mais precocemente é no mínimo temerário. Ela tem sido feita por alguns políticos que “vendem” propostas de apelo fácil junto à sociedade, ignorando os dados de criminalidade, bem como o fracasso de nações que adotaram a medida, como os EUA. De todos os estados americanos, Nova Iorque é o único a manter a punição para adolescentes a partir dos 16 anos. Isto porque, segundo o New York Times, estudos apontam que “em pessoas mais novas, o tratamento é mais eficaz que o encarceramento. Todos os Estados americanos mantêm uma corte e um sistema correcional para juvenis, normalmente com programa que foca mais em tratamentos e reabilitação do que em punição”.
Os dados também desarmam a teoria de que a violência é cometida em grande parte por adolescentes. De 2002 a 2011 houve uma redução nos percentuais de homicídios cometidos por pessoas abaixo de 18 anos. Dados da Secretaria de Direitos Humanos apontam que os índices de assassinatos reduziram de 14,9% para 8,4%, de latrocínio passou de 5,5% para 1,9% e estupro de 3,3% para 1,0% .
O Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL), Instituído pela Resolução nº 77 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 26 de maio de 2009, e que reúne informações sobre Varas de Infância e Juventude de todo o país sobre os adolescentes em conflito com a lei, tem registros de ocorrências, até junho de 2011, de mais de 90 mil adolescentes. Desses, 30 mil cumprem medidas socioeducativas. Embora pareça alto, o contingente representa apenas 0,5% da população jovem do Brasil (21 milhões de meninos e meninas entre 12 e 18 anos incompletos), sendo que a maioria responde por crimes contra o patrimônio.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), promulgado em 1990, prevê responsabilização a partir dos 12 anos de idade. A internação é uma medida extrema e aplicada quando:
a) tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa;
b) por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
c) por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta, caso em que não poderá exceder a três meses.
Cabe ressaltar que a medida socioeducativa tem como princípio a reinserção social e garantir um papel construtivo para o jovem na sociedade. Por isso a internação deve ser feita (art. 123) em locais específicos, separando os internos por tipos de delitos, idade, compleição física, com cuidados especiais e proteção. As unidades devem contar programas de educação, formação profissional, esporte, lazer.
Existe ainda um ponto do Estatuto prevê o monitoramento das medidas socioeducativas, que é o Plano Individual de Atendimento (PIA). A pesquisa “Panorama Nacional – A execução das medidas socioeducativas de internação”, publicada pelo CNJ em 2012, revela que a estrutura atual não colabora com a aplicação do ECA e a ressocialização desses jovens. Apenas em 5% de quase 15 mil processos de adolescentes infratores havia informações sobre o Plano Individual de Atendimento (PIA), uma forma de mensurar o desenvolvimento deste jovem e a eficácia da medida socioeducativa. Além disso, outras situações evidenciam o descaso de autoridades com o cumprimento da legislação: o abuso sexual de pelo menos um adolescente em 34 instituições no prazo de um ano, 19 assassinatos em unidades, quase 30% dos internos revelaram ter sofrido tortura praticada por funcionários, além da superlotação verificada em 11 estados.
Os levantamentos sobre a aplicabilidade do ECA revelam que a legislação é ignorada desrespeitada diariamente pelos governos estaduais. Não há nessas unidades nenhum projeto educacional, de formação profissional e as atividades de esporte, lazer e cultura são praticamente nulas. Enfim, o estatuto não é cumprido. Os adolescentes em conflito com a lei são tratados como se fossem criminosos sem recuperação.
Se existe atualmente um deliberado desleixo com a reinserção social desse adolescente em conflito com a lei não é demais imaginar o desastre que seriam inclui-lo em uma prisão de adultos, que tem como realidade celas abarrotadas (considerando que as vagas não passam de 300 mil nos 1.171 presídios no país para um contingente de 538 mil), em cadeias que primam pela barbárie, agressões físicas e psicológicas, que só ampliam a revolta desses presidiários contra a sociedade. São as chamadas masmorras, que em vez de restringir somente a liberdade como prevê a lei, submete o infrator à degradação humana, à convivência com ratos, baratas, pessoas infectadas com tuberculose e outros tipos de doenças infectocontagiosas, a ingerir comida estragada, a sofrer violações físicas, e não raramente ter passe livre para sair de presídios e cometer crimes durante a noite, com parceria de agentes públicos, seja por corrupção, ou sociedade em ilícitos, entre outras amplamente noticiadas.
Os defensores da redução da maioridade penal usam argumento frequente que adultos usam crianças e adolescentes para cometer crimes. Ignoram os dados que apontam um mínimo de jovens nesse tipo de atividade, bem como os números de violações contra essa faixa etária da população. O Mapa da Violência 2012 aponta que quase nove mil crianças e adolescentes foram assassinados no Brasil em 2010. O Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos revela que em 2012, mais de 120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus tratos e agressões e menos de 3% dos suspeitos tinham menos de 18 anos. Ou seja, é o adulto o principal agressor de meninas e meninos. E não existe qualquer comoção nacional no sentido de interromper as violações contra essa ampla parcela da população.
Dados do Unicef de 2009 também já apontavam que quase 80% do mundo adotam a maioridade penal para adultos aos 18 anos ou mais. O Brasil é referência mundial nessa área. Adotar a maioridade a partir dos 16 anos é ir na contramão da história e retroceder sem qualquer argumento plausível para tanto, além de desrespeitar uma legislação internacional ratificada pelo estado brasileiro, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Decreto nº 99.710/1990), período em que foi promulgada a Lei 8090/1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Há também de se lembrar que a inimputabilidade (penal) de menores de 18 anos é uma cláusula pétrea da Constituição, uma garantia individual, intocável. Não há como alterá-la por projeto de lei. Somente a realização de outra Constituinte, com a redação de uma nova Carta Magna.
Recentemente no Espírito Santo, um motorista de caminhão foi morto por pessoas da comunidade ao atropelar sem querer uma criança. A menina desprendeu-se da mãe e correu para a rua sem dar tempo ao caminhoneiro para enxergá-la e frear o veículo. O homem foi brutalmente assassinado a facadas e pedradas. A justiça feita num momento de desespero por parentes e amigos foi cruel, porque destruiu também a vida de outra família, a do motorista.
Alterar legislações no calor dos acontecimentos não é racional, como se espera de matérias tão sérias, é como “fazer justiça” com as próprias mãos. Escamoteia estudos e dados sobre o tema em questão, ignora o quanto os estados deixam de cumprir os atuais preceitos legais, seja em relação ao sistema de internação de adolescentes ou das prisões para adultos, empurrando para outros suas responsabilidades, que de certa forma colaboram em muito para o aumento da criminalidade e da violência nas cidades.
Cobrar a execução das leis atuais seria mais eficaz do que inventar outras sem consistência e que tendem a piorar a situação. A indignação deveria ser diária, um exercício de cidadania, de fiscalização de governos, Ministério Público e Judiciário, e não apenas usada por alguns em horário nobre de televisão, capitalizando dor alheia, de olho apenas nos lucros eleitorais.
*Iriny Lopes é Deputada federal – (PT-ES)