Foto: Gustavo Bezerra
Em artigo a deputada Iriny Lopes (PT-ES)analisa a suspensão de mandato do deputado tucano Carlos Alberto Leréia (Go). “É curioso que um caso de suspensão de mandato tenha sido levado a plenário. Há alguns meses, quando a Câmara aprovou a adoção de voto aberto, muitos acreditaram que seria a solução, inclusive o PSOL, para resolver as vergonhosas situações que culminaram, por exemplo, na absolvição do deputado Donadon, na primeira vez.” Para a deputada, “a Câmara abriu um perigoso precedente, um jogo combinado para inocentar os mesmos de sempre, com artifícios tortuosos e incompatíveis com a vida pública, e condenar seletivamente, conforme os interesses de ocasião”.
Leia a íntegra:
Jogo combinado
A votação no plenário da Câmara que decidiu por acatar a decisão do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar sobre o caso do deputado Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO), em 23 de abril, selou uma anomalia no processo legislativo. Conhecer o processo dá uma dimensão do precedente tortuoso iniciado no conselho e que culminou praticamente na absolvição do peessedebista.
Em 19 de dezembro de 2012, a Mesa Diretora da Câmara encaminhou representação contra o parlamentar, acusado de ligações com o contraventor Carlos Augusto Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira. As denúncias envolvendo Leréia partiram das operações Monte Carlos e Vegas, feitas pela Polícia Federal. Na CPMI criada para investigar Carlinhos Cachoeira são relacionadas no inquérito da PF 72 ligações telefônicas entre o bicheiro e o parlamentar, e outras 26 em que ele é citado em conversas de outros integrantes da organização criminosa. Os temas tratados nas conversas não deixam dúvidas de que o parlamentar usava o cargo para beneficiar Cachoeira e seu grupo. Leréia interferiu em nomeações no governo de Goiás (Marconi Perillo, também do PSDB), seja para manter funcionários ligados ao esquema criminoso, ou para exonerar quem atrapalhava as negociações.
Um dos casos emblemáticos foi o delegado Alexandre Pinto Lourenço. Em maio de 2011, ele foi nomeado para chefiar um trabalho de investigação sobre o funcionamento dos jogos de azar no Estado de Goiás e a atuação do crime organizado na região. Diz o relatório: “Em poucos dias, o delegado havia produzido um meticuloso trabalho de mapeamento das atividades ilegais do grupo comandado por Carlos Cachoeira, com endereços e respectivos responsáveis pelas práticas criminosas, tudo documentado em relatório enviado à cúpula da Secretaria de Segurança Pública e à Chefia da Polícia Civil (documentos disponíveis no relatório da CPMI).”
Incomodado com a ação do delegado, Carlos Cachoeira consegue removê-lo da chefia do trabalho e soterrar a investigação, com a ajuda do deputado do PSDB Carlos Alberto Leréia, que tinha informação privilegiada sobre as operações policiais.
Em contrapartida, o parlamentar conseguia do grupo vantagens pessoais, como “doações” em dinheiro, empréstimos de valores sem origem declarada, viagens com a família em avião do contraventor e até chegou a usar o cartão de crédito de Carlinhos Cachoeira para despesas pessoais.
As interceptações da Polícia Federal (e são muitas), incluídas no relatório da CPMI confirmam a relação entre o deputado federal e Carlinhos Cachoeira. “Em 2011, o grupo de Cachoeira repassou para o deputado Carlos Alberto Leréia da Silva o montante de R$ 85.000,00 (oitenta e cinco mil reais). Os repasses no ano de 2011, de acordo com as ligações, foram realizados nos meses março e abril e sendo mais dois captados nos meses de julho e agosto. Os valores variam entre R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e R$ 25.000,00 (vinte cinco mil reais).
O relatório da CPMI ressalta que “o repasse dos valores era realizado em dinheiro vivo, não transitando por bancária, e dificultando a visualização por parte dos órgãos de fiscalização e controle, tais como: Banco Central, Secretaria da Receita Federal do Brasil, Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, entre outros.”
Em outro trecho, “Carlos Cachoeira e o deputado Leréia falam sobre viagens e negócios, onde o deputado Carlos Leréia convida o amigo para visitar a Serra da Mesa no interior do Goiás. Ao final da conversa Carlos Cachoeira informa seus dados e senha do Cartão América Express para o Deputado Leréia poder utilizá-lo.”
Segundo relatório da CPMI, “os gastos no cartão podem ser fruto de pagamento ao deputado Leréia como resultado de serviços prestados, ademais, outras operações financeiras já foram observadas entre ambos pelo recebimento de recursos em espécie pelo deputado em diferentes áudios de interceptações telefônicas da Polícia Federal.”
Ainda que Leréia tenha argumentado conhecer Cachoeira há muito tempo e ser seu amigo, as evidências acima já configuram como crime e uso do cargo para benefício próprio e de terceiros. Uma das situações mais graves é a que fraude em licitação, com acordo entre empresas para fatiar a concorrência da BR 060, dentre elas a Delta Centro Oeste (vinculada a Cachoeira). Em determinado momento, uma empresa passou a perna na outra e o deputado é acionado pelo grupo do contraventor para não se manifestar em plenário, pois o caso seria resolvido entre eles. Chama a atenção, além da participação de Leréia, o envolvimento do governador do Goiás Marconi Perillo no esquema.
Claudio X Carlinhos 15/06/2011, 12h38m11: CLÁUDIO ABREU, diretor da Delta Centro Oeste, e Carlos Cachoeira combinam de pedir para Carlos Leréia baixar o tom na tribuna
CLÁUDIO: É o seguinte cara. No ano passado naquele processo da BR-060, quando teve que cada lote agasalhar os locais, eu tive que agasalhar uma outra empresa goiana. Aí eu troquei de posição com ele, fiquei sozinho e comprei a posição dele. A CCL, que é daquele tal de José Henrique e do Miltinho, que vendeu a casa pro Marconi, ficou com o trecho da Via com a Queiroz Galvão. Passaram a perna neles e entrou a Agrimar no lugar deles, e eles vieram cobrar na Aneor. Só que eles foram atrás do LERÉIA, cara, e o LERÉIA não sabe porra nenhuma, tá vendido nisso aí, mas tá botando a boca no trombone, xingando e batendo, e os caras tão vindo junto também em cima do meu lote, pô. Então, eu não vou abrir, não vou deixar nem nada, mas o cliente tá cagando de medo do Leréia, do Pagot em Brasília, dele (Leréia) ir na Tribuna fazer escândalo, não sei o que. Fala pra ele cobrar desse aí, mas que briguem com os caras botarem nos outros lotes, de CCB, Construmil, mas não no meu, pô.
CACHOEIRA: Vou falar pra ele ficar quieto, tá bom? Um abraço.
CLAUDIO: Lá são seis lotes, cara. Ai os cara, como eu comprei a posição daquele gordo da (…) E o cara: Ai mais o Leréia está incomodando, tá pressionando, tá batendo. Ameaçou de ir na Tribuna e xingar todo mundo e contar os conluios. Foda né porra.
CACHOEIRA: Não eu vou falar lá (…) (grifo nosso)
Para a CPMI, “o deputado Carlos Leréia não somente tomava conhecimento dos negócios envolvidos entre as empresas e o governo, mas fazia parte das atividades, na medida em que manifestava expresso interesse em certos posicionamentos ao ameaçar expor todos os conluios em Tribuna. A simples ameaça de exposição ao público preocupa os integrantes da organização criminosa. O que justificaria tal intranquilidade dos dialogantes? A explicação mais plausível ao realizarmos uma interpretação dos atos corriqueiros dos integrantes da organização é que as atividades desenvolvidas envolviam atos com fortes indícios de ilicitude e ilegalidade. …Cada vez mais o Deputado Carlos Leréia vem assimilar-se ao ex-Senador Demóstenes Torres em termos de atuação e conluio com a organização criminosa de Carlos Augusto de Almeida Ramos.”
Todos os fatos descritos fazem parte do memorial a que o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar tiveram acesso para julgar o deputado federal do PSDB Carlos Augusto Leréia. Em setembro de 2013, o relator do caso, deputado Ronaldo Benedet (PMDB-SC), recomendou a perda de mandato. Mesmo apontado como integrante de organização criminosa pela PF e incluído no relatório da CPMI, os conselheiros rejeitaram o parecer de Benedet e apoiaram a suspensão por três meses, sugerido pelo deputado Sérgio Brito (PSD-BA).
Em seu voto, Brito alegou que o comportamento de Leréia não justificava a aplicação da pena de cassação, mas considerou “censurável” as relações do parlamentar goiano com Cachoeira. Para ele, as ligações telefônicas do tucano com o contraventor revelaram uma “evidente relação de intimidade que pôs em dúvida a lisura dos atos do parlamentar e a seriedade do próprio Parlamento”. Mesmo assim, sugeriu apenas uma suspensão de 90 dias. E foi essa proposta que seguiu para o plenário, em 23 de abril de 2014, aprovada por 353 votos a favor e 26 contra, sendo que 25 desses de parlamentares são do PT (com meu apoio). Importante ressaltar que o PT liberou a sua bancada.
O voto em separado feito pelos parlamentares contrários ao parecer foi justificado em plenário pelo deputado petista Dr. Rosinha:
“Os deputados abaixo assinados requerem, com base no art. 182, parágrafo único, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, seja publicada a seguinte declaração de voto referente à Representação nº 17-A, de 2012, que estamos votando.
Votamos não ao parecer do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, por entendermos haver elementos que justifiquem a cassação do mandato e não a simples suspensão do exercício de mandato.” Assinaram o documento Iriny Lopes, Luci Choinack, Érica Kokai, Fátima Bezerra, Maria do Rosário, Iara Bernardi, Margarida Salomão, Amauri Teixeira, Pepe Vargas, Bohn Gass, Ronaldo Zulke, Artur Bruno, Dr. Rosinha, Paulo Teixeira, Fernando Ferro, Afonso Florence, Padre Ton, Henrique Fontana, Jorge Bittar, Padre João, Waldenor Pereira, Assis do Couto, Newton Lima, Renato Simões, Odair Cunha.
A declaração de voto chamou a atenção inclusive de oposicionistas, como Miro Teixeira, que se deu conta do absurdo que o plenário estava apreciando:
“Sr. Presidente, eu não conhecia essa manifestação do PT, mas eu estava com uma dúvida sobre o que aqui se passa. Eu penso que a decisão da Mesa tem um sentido político. Se houver uma deliberação do Conselho de Ética que venha a plenário e não seja pela cassação do mandato, a rejeição do parecer reabre a discussão, na prática, num procedimento muito próprio da Câmara dos Deputados, porque não é comum que uma pessoa seja julgada duas vezes pelo mesmo crime, ou que uma pessoa, recebendo uma pena menor, possa sofrer um processo com uma pena maior sobre o mesmo fato, desde que aquela pena menor não seja convalidada pelo Tribunal e, no caso, pelo Plenário da Câmara dos Deputados.
Nós estamos criando, penso eu, um rolo que vai ter consequências na frente, e, daqui a pouco, vêm outros processos para cá.
Eu compreendo o posicionamento refletido na nota lida pelo Deputado Dr. Rosinha. Eu não conhecia a nota, mas, por extremos opostos e por razões diferenciadas, chega-se à mesma conclusão. …Eu creio que este incidente — chamarei assim — servirá para que a Comissão de Justiça se pronuncie antes que aqui cheguem processos que provocarão discussões virulentas, eu acho.”
Vale ressaltar que Miro Teixeira se colocou em relação aos processos futuros e não ao caso de Leréia especificamente, considerando que este já estava aprovado.
A votação do processo do deputado do PSDB evidenciou outras contradições, inclusive da esquerda. O PSOL, em sua justificativa de voto, praticamente absolveu Leréia, demonstrando não ter lido (ou ignorado) o relatório da CPMI, onde está inclusa a investigação da Polícia Federal. A justificativa foi feita pelo deputado Chico Alencar (RJ):
“Sr. Presidente, nós estamos diante de uma situação que é sempre delicada, sempre difícil. A maioria absoluta dos partidos já encaminhou o seu voto favorável à punição, decidida no Conselho de Ética. Sabemos que ter o quórum regulamentar de aprovação não será tão fácil assim, pelas relações de amizade, pois tem muito peso aqui o chamado corporativismo. Entendemos também que, caso essa proposta não prospere, a outra (de cassação), com muito menos possibilidade ainda, será aprovada no plenário.
Não achamos que o deputado está sendo vítima de uma tremenda injustiça e não fazemos analogia com outros casos muito mais evidentes. Ao que consta, apesar da longa amizade com o bicheiro Carlos Cachoeira, o deputado Leréia nunca se beneficiou de voos de jatinho nem de emanação de recursos polpudos, ao que se sabe — pelo menos o relatório não demonstrou isso. Portanto, o nosso voto de cautela e de segurança, em nome da defesa da transparência da Casa e da boa ética parlamentar, é sim.”
Cabe questionar o PSOL se as relações corruptas podem ser medidas em valores, se abaixo de determinada quantia o crime é menor e, portanto, não representa uma afronta à ética e ao sentido público do cargo? Ter ou não usado avião de Carlinhos Cachoeira (muito embora Leréia tenha agilizado a emissão de passaportes da família do contraventor quando era da Comissão de Relações Exteriores) é um atenuante? Enfim, o PSOL considera que o fato de Leréia ter recebido “pouco dinheiro” do bicheiro, de ter interferido em investigações na Polícia Civil de Goiás para barrar investigações contra Cachoeira, de usar sua influência política no favorecimento de empresas em licitações fraudulentas são normais?
Que tais argumentos fossem usados por representantes do grande capital, do agronegócio, daqueles que se elegem por força do poder econômico, seria previsível. Mas alguém que pertence a um partido de esquerda, que mantém discursos inflamados em favor da ética e da transparência, causa certamente muita estranheza. Relativizar crimes comparando com outros casos é no mínimo leviano.
É curioso que um caso de suspensão de mandato tenha sido levado a plenário. Há alguns meses, quando a Câmara aprovou a adoção de voto aberto, muitos acreditaram que seria a solução, inclusive o PSOL, para resolver as vergonhosas situações que culminaram, por exemplo, na absolvição do deputado Donadon, na primeira vez (com voto fechado). O tempo mostrou como os parlamentares se adequaram para manter o “espírito de corpo”. O voto fechado foi trocado pela suspensão, inaugurado no caso de Carlos Alberto Leréia. A impunidade continua, agora sob nova modelagem.
O fato é que a Câmara abriu um perigoso precedente, um jogo combinado para inocentar os mesmos de sempre, com artifícios tortuosos e incompatíveis com a vida pública, e condenar seletivamente, conforme os interesses de ocasião.
Assessoria Parlamentar
*Iriny Lopes é deputada federal PT-ES