(*) Odair Cunha
Os problemas econômicos e estruturais das companhias aéreas não são um fenômeno exclusivamente brasileiro. Em maior ou menor grau, essa indústria enfrenta dificuldades e desafios em todo o mundo. No pós-pandemia, com as crises no preço do petróleo, os efeitos na renda por conta da guerra na Ucrânia, sem dúvida é um setor que –como tantos– vem padecendo. Mais ainda os trabalhadores, os assalariados e todos que precisam sobreviver. Dito tudo isso, a última cruzada das companhias aéreas agora é avançar contra algo que, apesar de não ser um direito, é uma propriedade do consumidor: as milhas aéreas.
Em entrevista a este jornal digital, o presidente da maior companhia aérea do país enumerou as diversas fontes de dificuldade por que passam as empresas do segmento.
No meio da argumentação, todavia, ele aponta para a questão das milhas e do legítimo direito do proprietário delas –o consumidor– de transacioná-las como bem quiser.
É importante, desde logo, esclarecer que as milhas não pertencem às companhias. São “ativos onerosos” adquiridos e, portanto, vendidos ao consumidor. As companhias vendem milhas quando prestam o serviço de transporte, a emissão de um bilhete aéreo. E embutem no preço o valor da venda de milhas, que são do consumidor.
As empresas aéreas vendem milhas diretamente. Vendem milhas quando ganham dinheiro dos bancos, dos cartões de crédito e de empresas e transacionam essas milhas como contrapartida para planos de fidelidade. O consumidor não ganha milhas quando usa o cartão de crédito. Foi a companhia que vendeu, antes, para a operadora e esta repassou a seu usuário como benefício.
Ocorre que agora as companhias aéreas, diante de seus colossais problemas, querem usurpar do consumidor, verdadeiro proprietário das milhas, o direito de fazer com elas o que bem quiser –inclusive vendê-las para empresas que possam comprá-las e emitir passagens para outros consumidores com desconto. O que seria um ganho para todos.
Na prática, o que as aéreas querem é um sistema econômico misto no Brasil: capitalismo para elas, socialismo para os consumidores. A maior prova de que as milhas são do consumidor é que há ampla jurisprudência de penhora de milhas na esfera judicial. A Justiça só penhora o que é propriedade de alguém, ora! Então, o argumento que sobra é que a revenda de milhas “só existe no Brasil”. Pois bem: só existe no Brasil também o Código de Defesa do Consumidor. O código que protege o consumidor da ganância desenfreada de empresas e reconhece que a propriedade dos consumidores deve ser respeitada. Vamos revogar o código porque só existe no Brasil? É esse o argumento?
Em meio a tantos problemas, as aéreas colocarem em xeque o justo direito dos consumidores e proprietários das milhas de fazer o que bem quiserem com elas não é correto e nem plausível. A economia circular, em que a reutilização permite o reaproveitamento de recursos em benefício de todos, é um benefício da livre utilização das milhas.
Um argumento final: as milhas têm prazo de validade. Sim, as aéreas não informam, não fazem campanhas, mas se o proprietário não as usar a tempo elas se transformam em bilhões de lucros para essas companhias. Entenderam? É a linha do balanço mais rentável das aéreas: basta não fazer nada que o dinheiro vira lucro na veia.
Vamos discutir esse direito e essa propriedade dos consumidores à luz do Código de Processo Civil e do Código de Defesa do Consumidor, sem terraplanismos. Aliás, o terraplanismo é outra coisa que “só existe no Brasil”.
Odair Cunha, advogado, é deputado federal pelo PT-MG
(Artigo publicado originalmente no Poder 360)