Adivinha quem me chama para almoçar – Leonardo Padura

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Leonardo Padura*

Para os cubanos, o Brasil sempre foi um território mítico. O Carnaval, as praias e o Cristo Redentor do Rio; a arquitetura futurista de Brasília; os familiares orixás da Bahia –irmãos dos que habitam Cuba–; a bossa nova; o futebol bonito; a megacidade de São Paulo; os sertões e os cangaceiros; a floresta amazônica e suas lendas; a riqueza fulminante de Manaus, com sua Ópera copiada do teatro parisiense; o ímpeto de Iguaçu: tudo isso, entre outros tópicos, alimenta a imagem colorida de um país mágico e magnético.

Para mim, além disso tudo, o Brasil é um local que percorri em muitos sentidos graças a minhas estáticas viagens literárias. Com Machado de Assis me levando pela mão, conheci o Brasil do século 19; com Jorge Amado, a Bahia (terra da magia, se há alguma); com Guimarães Rosa, aprendi a dura existência dos sertões; com Rubem Fonseca, a vida violenta das cidades modernas.

Mas, como a maioria dos cubanos, nunca havia estado no Brasil, e o desejo de visitar o país era um sonho que crescia como uma necessidade a sanar, pois se mantinha distante do meu alcance havia já muito tempo. Durante mais de dez anos, diferentes convites para visitar o país tinham se concluído na frustração do irrealizado e, enquanto viajava meio mundo, meu sonho de conhecer o Brasil se conservava incólume, como se sobre minhas pretensões pesasse uma maldição, também mágica, como qualquer maldição digna do nome.

Na verdade, tinha muitas outras razões, além dos mitos e dos transportes literários já mencionados, para querer visitar o Brasil. Algumas se relacionavam às confluências históricas entre Cuba e o gigante sul-americano. Mas a maioria era cultural –além da literatura, a música e o cinema brasileiros fazem parte do meu acervo sentimental– e havia até exigências e curiosidades de caráter social.

Estas últimas, como costuma acontecer, eram as mais cheias de reveses, especialmente complicadas no caso brasileiro, pois se moviam em polos tão opostos como as imagens cruas dos telejornais e filmes nos quais se falava de favelas, violência, miséria, tráfico de drogas, meninos de rua e operações policiais, enquanto no outro extremo flutuavam as fábulas das telenovelas “made in Brazil”, povoadas por mulheres e homens belos, de preferência moradores de Copacabana e Ipanema, condenados a sofrer por 120 capítulos a fio e só ao fim do drama recuperar seu direito à felicidade.

SUPERSTIÇÕES Como, apesar de eu ser ateu, meu caráter comporta certa propensão às superstições, só disse a algumas pessoas que armava uma nova tentativa de viajar ao Brasil.

Por isso foi quase em segredo que me inscrevi para participar da 2ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília. Com meus editores, na Boitempo, combinamos uma brevíssima passagem por São Paulo e Rio de Janeiro, pressionados pela chegada de uns feriados que tornariam impossível prolongar o trabalho a ser feito no país: conceder entrevistas e apresentar meu romance “O Homem que Amava os Cachorros”, que há poucos meses teve sua edição brasileira convertida, para minha surpresa e alegria, em um dos livros mais comentados e lidos deste 2014.

O feitiço da possível maldição por fim se rompeu e, na madrugada de 12 de abril, desembarquei em Brasília. Da janela do meu quarto no envelhecido Hotel Nacional, onde me hospedei com Lucía, minha mulher, tive a primeira imagem do que me esperava nessa viagem e das condições que delineariam seu caráter: pude contemplar alguns símbolos que se distinguem num país farto deles, sabendo que podia me aproximar de sua existência, mas sem que ssa proximidade implicasse um conhecimento verdadeiro.

Explico: daquela janela de hotel, divisei as dimensões reais das tão estudadas imagens da catedral de Brasília, do Teatro Nacional, as meias esferas do Senado e do Congresso, ladeadas pelos edifícios ministeriais entrevistos graças à luz artificial –mas sabendo de antemão que seria impossível fazer uma ideia cabal de seu papel na vida de um país e de seus habitantes, pois, para tanto, não basta a contemplação, mas se exige a participação, que requer tempo.

Devo fazer uma advertência: com frequência me indigno quando visitantes que passam fugazmente por Cuba –como era meu caso em relação ao Brasil, onde só ficaria por uma semana– voltam a seus lugares de origem seguros de terem conhecido meu país.

Um amor fugidio, e muitas vezes pago, com uma mulata; uns mojitos em algum restaurante famoso onde, claro, se diz que alguma vez esteve Hemingway (pouco importa se, de fato, esteve); um passeio pelo Malecón, onde salva-vidas ofereceram viagens ao céu e ao inferno e onde muitas vezes acabaram comprando “habanos” falsos; e uma tarde em uma praia onde o sol os castigou sem piedade bastam para dizer que conheceram Cuba. E, se são jornalistas, até para escrever sobre a realidade de um país que, aliás, nem nós, que vivemos toda a vida na ilha (mais de meio século, no meu caso), somos capazes de entender.

Não tinha a pretensão, portanto, de conhecer o Brasil, de entender a magia nacional ou explicá-la, mas tão somente de contemplar o que meus olhos encontrassem e, assim, satisfazer apetites básicos.

Na medida de minhas possibilidades, foi o que fiz: como turista acidental, caminharia pela avenida Paulista e pela orla de Copacabana; visitaria a catedral erguida pelo militante comunista Oscar Niemeyer, e com ela me deslumbraria, vendo-a mais católica do que seu criador poderia propor; contemplaria o Pão de Açúcar e, entre nuvens persistentes, o Cristo no Corcovado; sentiria a cidade eternamente inacabada de Brasília, a vertigem das ruas de São Paulo, com seus “homeless” estendidos nas calçadas; e, desde o forte de Copacabana, veria sua praia e surfistas empenhados em caçar as mansas ondas do Atlântico.

Na verdade, essa contemplação já significaria muito para mim, e quase nem esperava obter algo mais de uma primeira visita, lamentavelmente breve, no país de Chico Buarque e Caetano Veloso, de Rubem Fonseca e Guimarães Rosa, de Glauber Rocha, José Wilker e Di Cavalcanti.

O ENCONTRO Mas a magia brasileira, como um toque preciso de Ronaldinho Gaúcho, viria ao meu encontro da maneira mais inesperada e, se bem eu não tivesse tido tempo nem sequer de conhecer (com tudo o que o verbo implica) uma ínfima porção do país, o espírito do Brasil me deu a oportunidade de conversar com a pessoa que hoje rege a República. E, através dela, conhecer, sim, a gentileza e a hospitalidade brasileiras.

Quando, em meu primeiro amanhecer no país, abri a mensagem eletrônica que me enviava a assessora de imprensa de minha editora, Yumi Kajiki, sob o cabeçalho que dizia “urgente – mudança no programa”, pensei, num primeiro momento, que só podia ser piada.

Para o domingo, meu programa em Brasília previa, além da conferência na bienal, um almoço em que seria entrevistado pelo jornal “Valor Econômico”. A “mudança urgente” consistia em que, às 12h30, um chofer da Presidência da República passaria para nos buscar para almoçar com Dilma Rousseff.

Minha surpresa maiúscula se justificava pelo fato de que nunca antes havia recebido convite semelhante. Não sou do tipo de escritor que busca a amizade de poderosos e famosos; tanto menos se esses poderosos e famosos são políticos, uma espécie pela qual nutro, desde sempre, respeito –e, cada vez mais, uma compacta desconfiança, fomentada pela realidade.

Devo dizer que não foi tão logo que abandonei a ideia de que seria uma brincadeira de mau gosto, embora também tenha considerado que se tratasse de um equívoco.

Do mesmo modo, porém, preciso dizer que, depois de informar Lucía da mudança de programa, decidi esperar pacientemente (na verdade, impacientemente) que o encontro tivesse lugar, antes de falar dele com qualquer outra pessoa: se, no final, pelo motivo que fosse, o convite se frustrasse, ninguém acreditaria que aquilo não passara de imaginação de um romancista, muito embora os que me conhecem saibam que eu seria incapaz de inventar algo assim.

Mas, pontual, no domingo foi nos buscar Marco Aurélio Garcia, assessor da Presidência e um dos maiores conhecedores da atualidade latino-americana, além de amigo de Dilma Rousseff.

O carro enviado pela presidente nos levou até o Palácio da Alvorada, a esplêndida casa criada por Niemeyer que, em um passeio turístico matinal, havíamos visto de longe. Agora, porém, como se fosse apenas uma visita a uma casa de arquitetura fabulosa, mas desprovida de implicações sociais e políticas, entrávamos na residência dos mandatários brasileiros, onde nos esperava sua habitante atual.

Há algum tempo, fiquei sabendo que Dilma Rousseff me conhecia. Numa entrevista na eleição de 2010, um jornalista lhe perguntou o que estava lendo, e ela respondeu que lia um romance de um cubano chamado Leonardo Padura, “El Hombre que Amaba a los Perros”, e que o livro lhe parecia particularmente interessante pelo que podia aprender da trama narrada.

Mas de me ler a me convidar para um almoço ao saber que eu estava em Brasília vai um longo caminho, que se encerrou num encontro de quase três horas, no qual falamos de literatura, da realidade brasileira e da cubana, da saúde recuperada de Lula e, claro, de temas candentes: o programa Mais Médicos, sustentado com médicos do meu país, e a próxima Copa do Mundo, que tem deixado em suspenso toda a nação sul-americana –e não só pelo lado esportivo.

Depois de dizer à presidente que me sentia especialmente honrado, não pelo convite vir de um chefe de Estado, mas dela, precisamente, uma pessoa pela qual –como por seu antecessor, Lula– tenho patente admiração, os protocolos desapareceram.

Foi um almoço quase familiar, ao fim do qual saí do Alvorada com três agradáveis evidências: a primeira foi comprovar que há no mundo políticos que amam e respeitam a literatura; a segunda, saber que é possível estar na companhia do presidente de um país sem sentir a pressão de seus agentes de segurança; e a terceira, que Dilma Rousseff, apesar de ser uma política em exercício, nem sempre fala como política, mas como uma pessoa normal, convicta de suas razões e decisões.

Dilma –que, depois do café, dividiu comigo, gostosamente no salão do Alvorada, um dos meus “cigarrillos negros” cubanos– ainda postou, em sua conta no Twitter, comentários muito amáveis sobre minha obra e minha pessoa. “Almocei hoje na companhia do escritor Leonardo Padura e de sua mulher, Lucía. Foi um almoço muito interessante. Além de ser um escritor excepcional, Padura é um ser humano fantástico. Recomendo a leitura de seus livros”, escreveu. (E aproveito para agradecer aqui –já que não tenho conta no Twitter– pelas suas palavras.)

Minha semana brasileira terminou na noite de 16 de abril, com o lançamento de meu romance na sede carioca da Casa do Saber abarrotada. O comentarista do livro, nessa ocasião, seria frei Betto, que, gentil e generoso, me faria outros três obséquios: falar bem do meu trabalho, presentear-me com um pacote daquele que, segundo ele, era o melhor café do país e nos convidar, após o evento, para um jantar num restaurante de ambiente quase cubano, entre chapéus tropicais e “guayaberas” caribenhas, onde, além de servir comida deliciosa, permitia-se fumar inclusive charutos!

O toque especial daquele jantar, no qual pude fumar meus “cigarrillos” em um lugar fechado, enquanto tomava vinho tinto, foi encerrar uma estada intensa com uma piscadela de ironia. Naquela mesma manhã, no aeroporto do Rio, pela primeira vez eu havia sido multado por um policial intransigente, ao fumar na calçada do lado de fora do aeroporto. Depois de ter soltado baforadas com a própria presidente no Palácio da Alvorada, outra vez eu dava de cara com a magia brasileira!

* Leonardo Padura é escritor e jornalista cubano e autor de, entre outros, “O homem que amava os cachorros” (Boitempo) e “A neblina do passado” (Benvirá).  Traduzido por Francesca Angiolillo e publicado no jornal Folha de S. Paulo em 07/05/14

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