Seria excessivo falar em tragédia? Penso que não, se considerarmos o quanto sofreu a área da educação com os desdobramentos do golpe que removeu Dilma Rousseff da Presidência da República.
Basta lembrar que a “Ponte para o Futuro”, fundamento da ascensão do ilegítimo Michel Temer, e que é o programa de governo efetivamente abraçado pela dupla Bolsonaro/Guedes, fere de morte o Plano Nacional de Educação ao impor o fiscalismo do Teto de Gastos1. Na prática, a Emenda Constitucional (EC) 95 derruba o pacto constitucional de 1988: ao limitar à inflação do ano a correção dos gastos sociais, nosso tardio estado de bem-estar desmorona em todas as áreas.
Essa triste involução da educação brasileira será mais bem compreendida à luz de dois apontamentos. O primeiro é o extraordinário atraso com que as elites nacionais reconheceram para o país a pauta da educação. O segundo é o progresso que logramos com os governos petistas no início do século 21.
Sobre o primeiro ponto, nem quero lembrar que entre a fundação da Universidade Autônoma de Santo Domingo na República Dominicana, em 1538, e a criação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de São Paulo (USP) na terceira década do século 20, transcorrem quatro séculos. Que Harvard, reputada a primeira universidade norte-americana, foi fundada em 1636, enquanto nossas primeiras faculdades (de Direito e Medicina) remontam à vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808. Quero referir-me às dificuldades no desenvolvimento da educação básica, que espelham o atraso no tratamento brasileiro da escravidão, da questão da terra, do trabalho e da renda da população trabalhadora.
O fato de que até o final do século 20 se fizesse ouvir o discurso dos pioneiros Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire clamando pelo direito universal à educação – por uma educação popular e de massas – explica a bizarrice de que ainda na década de 90 do século passado houvesse um programa de governo intitulado “Todas as Crianças na Escola”! Importante considerar esse dado quando se ouvem tantas trombetas do apocalipse sobre a qualidade da educação brasileira, os resultados no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) e outras sandices.
Com relação ao ensino médio, que é de fato um dos pontos mais fracos do sistema (junto com a educação infantil), é preciso lembrar que o programa da modernização autoritária da sociedade brasileira, ao longo do século 20, priorizou a industrialização, a urbanização, o desenvolvimento regional, mas, coerente com sua raiz política, ignorou solenemente o tema da educação dos jovens. Como observa Naércio Menezes, “na primeira metade do século 20, enquanto outros países do mundo, como os Estados Unidos, os países da Europa e mesmo o Chile e a Argentina já estavam universalizando o ensino médio, o Brasil ficou para trás”2. A resposta a esse desafio inadiável foi, infelizmente, a triste anti-reforma do ensino médio que o governo Temer fez aprovar a toque de caixa em 2017.
Nesse quadro tão ingrato, há razões para saudar os consideráveis avanços obtidos no campo da educação desde a Constituição Cidadã de 1988 e desde a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, em que pese a perda de oportunidades na votação desta última.
Especialmente as conquistas nas gestões petistas nos levavam a vislumbrar um horizonte esperançoso nas proximidades do Bicentenário da Independência: além do inquestionável crescimento do investimento público em educação no período (estava perto de 6% do PIB quando foi interrompido o governo Dilma), a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 nos levava a esperar uma participação de 10% no PIB de 2024.
O gráfico acima3, com dados da Secretaria do Tesouro Nacional, demonstra o fortíssimo crescimento da Função Orçamentária Educação entre os anos 2003 e 2015, apoiando ganhos em todos os pontos do sistema educacional, embora certamente a sua expressão mais vistosa tenha sido o crescimento do sistema da educação superior pública, o qual não apenas aumentou quantitativamente4, mas mudou de qualidade ao interiorizar-se e democratizar-se pelo sistema de cotas sociais e raciais: hoje 71% do alunado da educação superior pública procede de famílias com renda inferior a 1,5 SM e 51% dos estudantes se identificam como negras e negros, numa experiência sem precedentes de diversificação do topo da sociedade brasileira5.
É fato que mesmo nos resultados das avaliações educacionais de massa (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – Ideb, Pisa…) estávamos num processo de evolução positiva. Entre 2005 e 2015, o Ideb dos primeiros anos do ensino fundamental aumentou de 3,6 para 5,3, e nos anos finais desse ciclo passou de 3,2 para 4,2. Claro que continuávamos defasados em relação aos países que, antes do nosso, decidiram tomar a educação como prioridade.
De outro lado, esses mesmos índices espelhavam a vergonhosa desigualdade social do país (segundo a ONU, éramos em 2015 o décimo país mais desigual do mundo…): dentro da rede pública, 98% dos estudantes com nível socioeconômico mais alto têm um desempenho adequado de leitura, situação que só é apresentada por 45,4% dos estudantes com o nível socioeconômico mais baixo. O quadro é ainda muito pior com relação ao conhecimento de matemática: 85,9 e 14,3% respectivamente6.
Dois pontos a destacar desses dados sobre o ensino fundamental: o primeiro, o inegável efeito positivo do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) na melhoria do desempenho dos estudantes brasileiros; o segundo, o impacto brutal das diferenças sociais como elemento a considerar na proposição de uma agenda para a educação democrática e de qualidade para todas e todos.
Sem o golpe de 2016, já estavam postos para a sociedade brasileira imensos desafios que remontam à nossa formação histórica: colonial, escravista, patriarcal e capitalista periférica. Com o golpe e o colapso da pactuação da Nova República, acrescentamos a nossos enfrentamentos estruturais e originários a luta pela democracia em todas as trincheiras.
O governo Temer foi muito ruim para a educação brasileira: não apenas pela malsinada reforma do ensino médio e pelo advento da EC 95. O Ministério da Educação (MEC) deliberadamente desmontou ferramentas de gestão democrática, como o Fórum Nacional de Educação ou a 3ª Conferência Nacional de Educação, que foi esvaziada. Ainda pior: desfigurou o Conselho Nacional de Educação, ignorando as indicações representativas da sociedade, que tinham sido encaminhadas pela presidenta Dilma, e nomeando em seu lugar defensores de uma perspectiva privatista das políticas nacionais de educação.
Entretanto, a gestão Temer do MEC acabou sendo até reabilitada pela sua sucessão catastrófica na Presidência Bolsonaro. Dois ministros: dois horrores. Não são, entretanto, Vélez e Weintraub senão a ponta do iceberg do tratamento bolsonarista da educação, convertida em campo de guerra cultural, sem a mínima perspectiva de integração em algum projeto estratégico para o desenvolvimento nacional. Eis a razão para o largo espectro do repúdio ao MEC bolsonarista: da esquerda à direita clássica, o “Fora Weintraub” precedeu o “Fora Bolsonaro”. Na verdade, hoje o apoio a Weintraub no MEC se reduz a setores radicalizados, de perfil neofascista.
Por conta dessa perversão de objetivos, somos obrigados a debater excrescências como a Escola sem Partido (ofensiva de grupos religiosos conservadores contra a educação para a diversidade social e cultural, inscrita na LDB de 1996); ou a militarização das escolas públicas, para “enfrentar a indisciplina” e inculcar na juventude uma ideologia da “lei e da ordem”. Essa mesma juventude que, através da “revolta dos secundas”, em plenos aftershocks do golpe de 2016, resistiu bravamente ao desmonte do ensino público em Goiás, em São Paulo, em vários estados da federação, revelando uma cultura cívica de que carecem os atuais gestores nacionais da educação.
Tudo isso é um pesadelo, no qual parecemos estar fazendo uma viagem no tempo pela Espanha franquista… Pior que o pesadelo é a perda de tempo. Já foram para as calendas as metas do PNE de 2014, aprovado por unanimidade no Congresso Nacional e sancionado sem vetos pela presidenta Dilma. Corremos o risco iminente de perder o Fundeb, que se extingue em dezembro deste ano, e que, através de uma vasta mobilização da sociedade (mesmo em circunstâncias muito ingratas), encontra-se hoje em condições de ser constitucionalizado pelo Congresso, numa proposta que é inclusive superior à atual versão.
Nesse quadro de desastre, sobrevém a pandemia. Quando, no mundo todo, as esperanças da sociedade se sustentam na redescoberta dos benefícios da saúde pública (vide o expresso reconhecimento do primeiro-ministro inglês Boris Johnson, um autor insuspeito…), e, ao mesmo tempo, em investimentos estatais gigantescos em ciência e tecnologia, o governo brasileiro expressa um negacionismo extremamente perigoso para a gestão da calamidade e converte em disputa política a presente crise sanitária e social.
Tamanho obscurantismo não pode surpreender em quem pratica um bullying programático às universidades e institutos federais, ora assediados pela asfixia brutal de seus orçamentos (nesse ano de 2020, as instituições operam com um contingenciamento de 40% de seus recursos, inclusive, e de forma inédita, os recursos destinados a pagamento de pessoal), ora agredidas em sua autonomia, na forma de intervenções contra os processos democráticos de escolha para as reitorias das instituições.
Como cereja desse bolo, temos agora a obtusidade com que o MEC se recusa a adiar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), dando corpo à ficção de que nos encontramos em tempos de normalidade, sem espaço para reconhecer os impactos sociais do “vírus chinês”…
O fato é que, por todo o Brasil, as escolas suspenderam as suas atividades regulares a bem da prática do isolamento social, única estratégia provada eficaz para a supressão da pandemia. E é fato também que o país não tem, no ensino médio, infraestrutura material e pedagógica que pudesse oferecer aos estudantes compensação à educação presencial, impraticável nesse momento.
Portanto, estão sob ameaça duas das mais importantes ferramentas da democratização do ensino superior que esse país já construiu, a saber: o Enem e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Massas de alunos, de condição socioeconômica desfavorecida, que não possam recorrer a recursos complementares para sua preparação tendem a deixar de participar do exame e, assim, permitir uma reelitização social do alunado da educação superior pública no Brasil.
Outra manifestação nefasta da concepção ideológica hoje instalada no MEC é a intervenção nas políticas de pós-graduação, uma construção de décadas que tornou a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) uma eficaz ferramenta do Estado brasileiro para a pesquisa e para a formação de quadros especializados da docência superior e da investigação. Após escolher para sua presidência um professor que cultiva expressamente convicção criacionista sobre a evolução natural, o governo edita neste início de ano a Portaria 34, que desorganizou o sistema, rompeu uma pactuação consolidada com as pró-reitorias de pesquisa e pós-graduação das universidades, gerou uma sensação de insegurança entre mestrandos e doutorandos, tudo o que o bom senso recomendaria evitar.
Como se vê, são ataques em todas as fronteiras. Os terraplanistas no governo têm razão em temer as ciências (e, entre estas, as ciências humanas e sociais, as mais perigosas!). Têm razão em hostilizar as universidades e tentar transformar a educação em domesticação social e subordinação para o trabalho precário. Afinal, quem tem o desplante de encarar a grave crise que a pandemia desvelou como escada para uma aventura autoritária certamente vê na promessa emancipatória da educação e da produção científica um obstáculo a ser derrotado.
O que não se afigura mais possível é cultivar diante dessa situação uma leniência conformada. A possibilidade de efetiva transformação social do país pela redução da desigualdade e pela participação relevante no quadro contemporâneo da economia do conhecimento convoca os democratas à ação. Democratas de todos os matizes, de todas as raízes, estão convocados a dar um basta nessa conjuntura intolerável. Fora Bolsonaro! Em defesa da vida, da educação e da democracia no Brasil.
Margarida Salomão é deputada federal pelo PT-MG
Publicado originalmente na revista “Teoria e Debate”
Notas
1. Nelson Cardoso do Amaral. PEC 241/55: a “morte” do PNE (2014-2024) e o poder de diminuição dos recursos educacionais. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v.32, n.3, 2016.
2. Barbara Cavalcanti, Bruna Nobrega e Lázaro Campos. Educação brasileira e seu investimento após teto de gastos. AUN/USP, 19 de fevereiro de 2018.
3. Nelson Cardoso do Amaral. Apresentação “O financiamento da Ciência e da Tecnologia:qual a prioridade nacional?”, feita na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação da Câmara dos Deputados, 29 de outubro de 2019.
4. 18 novas universidades e 173 campi universitários por todo o Brasil. Também foram implantadas 360 novas unidades de institutos federais pelo país. Esse esforço levou a uma duplicação do numero de alunos no sistema público federal da educação superior.
5. Ana Luíza Matos de Oliveira. Educação superior brasileira no início do século 21: inclusão interrompida? Tese de doutorado apresentada na Unicamp, 2019.
6. Dados da ANA/2016, citados porBarbara Cavalcanti, Bruna Nobrega e Lázaro Campos.Educação brasileira e seu investimento após teto de gastos. AUN/USP, 2018.