Leia a íntegra do discurso:
Senhor Presidente, senhoras deputadas, senhores deputados:
Hoje, senhor presidente, quero lembrar os 30 anos de anistia, a serem comemorados no dia 28 deste mês de agosto. Falo como deputado e militante político. E como quem enfrentou tortura e prisão. Entre os que compartilharam a prisão comigo na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, e entre os perseguidos da ditadura, estão os meus melhores amigos, minhas melhores amigas, desses de guardar para sempre do lado esquerdo do peito, como diz a canção.
Quando nos debruçamos sobre o tempo que passou, a memória seleciona, procura o que é mais importante, mais significativo para cada um de nós. É o que tenho feito nesses últimos dias, quando penso nessa data de lembrança dos 30 anos de anistia. Pensava num pedido insistente que nos fazem: quando falarem do passado, não falem mais de dores, nos falem de esperanças, nos digam do futuro. E creio que é um pedido bastante razoável.
Falar da anistia é falar de uma grande conquista do povo brasileiro. De uma luta difícil. Falar do dia 28 de agosto de 1979 é falar de um dia de alegria. De reencontro. Um dia em que se celebrava a saída de tantos companheiros da prisão. A volta de tantos outros do exílio. A saída de outros da vida clandestina. A anistia foi resultado da luta do Movimento Feminino pela Anistia, do Comitê Brasileiro Pela Anistia, da Igreja Católica e de igrejas evangélicas, de parlamentares que se dedicaram a ela, e nos lembramos com emoção da luta de um Teotônio Vilela.
Na Bahia, quero simbolizar as homenagens da luta pela anistia, correndo sempre o risco das injustiças, primeiro nos que estiveram à frente do Movimento Feminino pela Anistia, dona Isabel Santana (Bebé Santana) e do Comitê Brasileiro pela Anistia, Joviniano Neto e Ana Guedes. Depois, nos advogados, e lembro o meu advogado, José Borba Pedreira Lapa, exemplo de coragem, sabedoria jurídica e dignidade, e mais Inácio Gomes, Jaime Guimarães e Ronilda Noblat. Os dois últimos já não estão entre nós.
E por fim, simbolizar as homenagens nos nossos familiares, nossas mães, irmãs, pais, parentes, nossas mulheres, que nunca nos abandonaram.
A anistia foi parte importante da luta contra a ditadura. Insista-se: foi uma conquista da sociedade civil, particularmente dos movimentos pelos direitos humanos e dos movimentos de anistia.
A partir da anistia, aumentou o ritmo das mobilizações populares, cresceu nossa organização e menos de seis anos depois, a ditadura acabava.
Sair da prisão, voltar do exílio, respirar o novo clima de liberdade não era pouco, e era obviamente um motivo de grande alegria. Não há como desconhecer isso. Voltávamos à vida, à militância política aberta. Para quem vive mergulhado na política, ser afastado dela compulsoriamente é quase a morte. E a anistia nos repunha na cena política, legalmente. E por isso é justo que nos peçam para que falemos de esperanças. A anistia reanimava nossas esperanças.
Ela, no entanto, não veio ampla, geral e irrestrita. Deixou de lado alguns dos nossos companheiros que estavam presos sob o argumento de que tinham praticado “crimes de sangue”. Sobre estes, Teotônio Vilela, o inesquecível Teotônio Vilela, em sua cruzada pela anistia, dizia não ter encontrado neles nenhum traço terrorista, mas jovens idealistas que haviam arriscado a vida pelo bem do Brasil, completando, com propriedade: “Convidaria todos eles para se hospedarem em minha casa, convite que não faço a muitos ministros do atual governo”. O “atual governo” era a ditadura.
A anistia de então perdoou torturadores e criminosos, recusou-se a qualquer investigação sobre mortos e desaparecidos.
Até hoje lutamos para esclarecer as circunstâncias das mortes de tantos companheiros e para saber onde estão os seus corpos. Não podemos perdoar torturadores. Não devemos. Em nome da humanidade, dos direitos humanos, do direito brasileiro, do direito internacional.
O governo Lula já constituiu comissão destinada a procurar os corpos dos desaparecidos do Araguaia e tomou medidas claras destinadas a abrir todos os arquivos da repressão política organizada pela ditadura. E isso nos alegra, nos conforta. Mas não nos deixa descansados.
E quando começamos a falar disso, penso, começamos a contrariar um pouco àqueles que nos pedem para não falar de dores. Sim, queremos falar de amor e de esperança. Mas, nosso amor e nossa esperança, nossos sonhos e nossas utopias, não são desencarnados. Têm história, trajetória. Há homens, mulheres e crianças no meio dessa história. Homens, mulheres e crianças que foram torturados, trucidados, mortos, despedaçados.
Não há qualquer exagero no que estamos dizendo. Nenhum. Isso é a expressão da realidade daquele período de terror e de sombras. De terror da ditadura. A nuvem de sombras espalhou-se por todo o País. Respirava-se com dificuldade no Brasil de então. Tudo era repressão. Ausência total de liberdade.
Para que os nossos sonhos não morram, é preciso que reconheçamos nossas cicatrizes. E, ainda, nossas veias abertas, nossas feridas, nossos corpos que ainda sangram com a lembrança de tantos mortos, torturados, desaparecidos. As feridas da alma, que volta e meia nossa imaginação apalpa, e as do corpo, aquelas que balas e torturas deixaram inscritas em nossa face, em nossos braços, em nossas pernas, cabeça, tronco e membros.
Como há de se apagar a morte de Carlos Lamarca, fuzilado impiedosamente no meio da caatinga, quase no mesmo lugar onde tombou Corisco? Se entrega Corisco, eu não me entrego não…
Como há de se apagar as mortes de José Campos Barreto – Zequinha -, que tombou ao lado de Lamarca?
Ou a de Otoniel Campos Barreto, irmão de Zequinha, assassinado no primeiro cerco dos assassinos da ditadura na caçada à Lamarca?
Como esquecer os sofrimentos de outro irmão, Olderico Campos Barreto, ferido à bala, impiedosamente torturado durante dias e dias mesmo com a mão ferida em frangalhos?
Como esquecer as torturas, nesse episódio, de idosos, camponeses, toda uma população submetida a um cerco implacável por assassinos como Fleury e Nilton Cerqueira? Eu e Oldack Miranda contamos tudo isso no livro Lamarca, o Capitão da Guerrilha, a caminho da 16ª edição.
Para que os nossos sonhos não morram, é preciso que assumamos nossos mortos, que não ignoremos nossas dores. Nós não queremos mergulhá-l
os nas brumas do esquecimento. Nossa indignação continua viva. E continuamos simplesmente irmãos de nossos irmãos.
Como pedir a Diva Santana que esqueça de sua irmã Dinaelza Santana? Como pedir à sua família que o faça?
Como pedir a mim mesmo que me esqueça de Gildo Macedo Lacerda, meu companheiro de AP e de movimento estudantil, preso na Bahia, e mandado para ser morto em Recife? Sua filha Tessa, nascida depois de seu martírio e assassinato, e Mariluce Moura, viúva dele, podem esquecer de tudo isso? Devem esquecer? Não. Nunca.
Como pedir que me esqueça de José Carlos da Matta Machado, Honestino Guimarães, Eduardo Collier e Fernando Santa Cruz? Todos meus companheiros de movimento estudantil, pertencentes à AP, e barbaramente assassinados?
Nós vamos exigir sempre que a humanidade seja respeitada. Nós caminhamos muito, lutamos muito para que a civilização alcançasse o patamar atual. Não podemos retroceder, abrir mão de valores essenciais. O direito de sepultar o ser querido é sagrado desde tempos imemoriais, e até isso a ditadura nos negou em tantos casos, e nós não podemos fingir que isso não ocorreu.
Como tirar de nossa memória as torturas a que tantas pessoas foram submetidas?
De vingativos, às vezes nos acusam.
Como vingativos?
Lembrar disso tudo é nossa obrigação, é nossa lealdade não só política, mas de sentimentos com os que se foram em nome dos nossos sonhos. Aqueles que morreram defendendo a liberdade, a democracia, o socialismo, a justiça, a melhoria de condições de vida do povo, idéias vistas às vezes como vagas, impalpáveis, e por isso mesmo, mais fortes porque anunciadoras do futuro, no qual eles acreditavam e que nós lutamos para continuar a alcançar neste País.É confortante viver sob o governo Lula, que procura, pela política, melhorar as condições de vida da maioria do povo brasileiro. Os sonhos são assim, impalpáveis, e por isso mesmo, belos, apaixonantes.
Há algum tempo, trabalhando numa reportagem para a revista IstoÉ sobre o padre Renzo Rossi, figura importantíssima de nossa luta pelas liberdades, pude revisitar o horror da ditadura, não tivesse eu próprio visto ele de perto. Não falo sequer das torturas em pessoas adultas, nas agressões que as mulheres sofreram, nas torturas sexuais, na tortura que levou tantos à morte. Isso já é parte do nosso acervo, macabro acervo.
O que pude revisitar naquela oportunidade, de forma particular, foi o massacre de crianças, como os dois filhos de César Teles e Maria Amélia Teles, de São Paulo, casal preso em dezembro de 1972. Janaína e Edson Luís, de cinco e quatro anos, respectivamente, foram levados presos para a OBAN, em São Paulo, obrigados a ver os pais massacrados, perguntando por que estavam ali. Quando os torturadores diziam que ali era um hospital, eles perguntavam se a mãe estava doente, e se era por isso que ela estava tão roxa, ou depois quando perguntavam se a mãe era bandida, ou por que o pai estava tão verde.
As duas crianças foram levadas para Belo Horizonte, onde ficaram meses, em algum aparelho da repressão, e quando os pais voltaram a vê-las, seis meses depois, estavam desestruturadas, sem conseguir articular palavra, com medo de tudo.
A família Teles tem desenvolvido uma luta persistente, política e judicial, pela punição do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, durante muito tempo comandante da tenebrosa OBAN.
Lembro-me ainda de Jessie Jane, de seu marido Colombo Vieira, presos no Rio de Janeiro em 1970. Quando a filha dela nasceu, os dois presos, em setembro de 1976, fizeram-lhe toda sorte de pressões e de terror, na linha de “Filho de comunista tem é que morrer”, apavorando-a durante a noite, impedindo a filha de poucos dias de mamar. Essa saga integra meu livro sobre o padre Renzo – As asas invisíveis do padre Renzo.
Tudo que digo aqui, senhor presidente, pareceria um cenário de ficção, não soubéssemos nós que estes são apenas dois exemplos de tantos outros que conhecemos, e contava eu, num artigo, o fato de os três filhos de Antônio e Anete Rabelo, crianças ainda, terem sido presos pela repressão na Bahia em 1971, junto com os pais.
A ditadura era uma excrescência, era um regime doente, incontrolável nos seus desvarios, na sua violência, no terror a que submetia toda a população brasileira e particularmente àqueles que se dispunham a lutar contra ela.
Basta que olhemos para qualquer dossiê de mortos e desaparecidos. Dos arquivos da ditadura, alguns dos quais abertos, emergem os corpos trucidados de nossos companheiros. Emerge o sangue de nossos companheiros e companheiras. Qualquer um de nós podia hoje figurar nessa triste galeria. Basta que se olhe o livro de Nilmário Miranda e de Carlos Tibúrcio. Ou o livro editado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, do governo Lula. Os livros que tenho escrito compõem também um painel de revelação do terror, pequeno painel.
Sinto-me em dívida com meus companheiros e companheiras trucidados pela ditadura. Sou um sobrevivente e imponho-me a tarefa de contribuir para a elucidação de um período tão trágico para a vida da Nação.
Não, nós não queremos esquecer.
Os nossos companheiros, os tantos que ficaram pelo caminho, que morreram lutando e em condições tão adversas, são parte de nossa vida. Nós não queremos afastá-los, renegá-los. Muito ao contrário, eles são parte de nós. Constitutivos de cada um de nós. A lembrança deles está presente.
De um lado, eles nos recordam o terror e a covardia de um regime doente – de que modo pode-se qualificar um regime senão de covarde e terrorista quando ela mata pessoas na tortura? E de outro, eles nos lembram do que o sonho é capaz.
Uma idéia é capaz de derrotar qualquer regime, por mais poderoso que ele aparente ser. Nós caminhávamos no meio da névoa, sob tempestades permanentes, nos feríamos, sentíamos a pele se rasgar no meio da caminhada, caíamos, morríamos tantos, os sobreviventes seguiam, movidos sempre pela necessidade de derrotar a ditadura, iniciar um novo tempo. Seguíamos sempre movidos por ideais de profundo amor pela humanidade e de ódio à ditadura.
Os nossos mortos deixaram a marca dos mártires, a marca dos que não se dobram, dos que resistem, dos que acreditam em suas idéias. Deixaram a marca dos homens e mulheres que não têm preço. Neste dia, na lembrança dos 30 anos de anistia, para falar de esperança, recordo-me que na cadeia, na Penitenciária Lemos de Brito, nós elaboramos um hino, que nos servia de estímulo, que nos unia, que nos emocionava sempre que o cantávamos:
Nos quartéis cruéis da ditadura
Não se rompe nosso elo solidário
Sempre existe acesa em nosso peito
A formação do partido proletário
Companheiros camponeses, operários
A vitória pela luta nascerá
A bandeira pelo povo levantada
Linda bandeira do Exército Popular
Nossos gritos saem das grades para as ruas
Num recado a todo o povo brasileiro
Esta batalha é geral do
s oprimidos
E pela morte dos trustes estrangeiros
Esta canção era para nós um sinal de esperança. Um sinal que do fundo das catacumbas nós continuávamos acreditando na luta por um mundo mais justo, mais democrático, mais humano.
Penso na diferença de atitudes entre o torturador e nós, os torturados. O torturador hoje busca a penumbra, se possível a escuridão completa. Ele foge das luzes. Ele só se esgueira à noite. Esconde-se da luz do dia.
Nós, não.
Fomos massacrados, machucaram nossos corpos, mas nós nunca deixamos de lutar pela luz, pela praça, pelo debate, pela discussão, pela democracia, pela liberdade. Continuamos e queremos continuar no meio da multidão. No meio da plebe que se rebela, que sempre se rebelará.
Certa vez, quando um coronel me mandou um e-mail reagindo a um artigo em que eu falava de torturas no Quartel de Amaralina, em Salvador, respondi duramente e disse-lhe que ele viesse a público, pelos jornais, dizer-me que ali não houvera torturas, e eu lhe responderia e daria os nomes. Ele sumiu. Continuou nas trevas. As luzes da democracia deixam os torturadores atemorizados.
Nossas dores, que não foram poucas, nossos mortos, que foram muitos, longe de enfraquecerem nossos sonhos e nossas esperanças, nos deram a certeza de que é preciso continuar olhando para a frente, caminhando, lutando por um novo tempo e um novo mundo, lutando para desmistificar a história oficial. É isso o que, com a tranqüilidade de quem apenas cumpre um dever, estamos fazendo hoje. Marcados pelas nossas cicatrizes, com saudades dos que se foram lutando, e convictos de que o sonho e a esperança continuam.
Continuamos a lutar pela abertura completa dos arquivos, certos de que contamos com o interesse do governo Lula para tanto, como, também, contamos, para falar de meu Estado, com o interesse do governador Wagner. Continuamos a lutar pela punição dos torturadores porque defendemos que o crime da tortura é imprescritível, como têm defendido também os ministros Paulo Vannucci e Tarso Genro. Continuamos a lutar pelo resgate dos corpos dos companheiros e companheiras desaparecidos. A natureza parcial da anistia nos convida a continuar a lutar.
Nossa geração cometeu muitos erros no percurso do combate à ditadura. Sabemos disso. E temos dito isso. Mas a ela, e falo de milhares de combatentes, de militantes donos de uma garra extraordinária, a essa geração não se pode negar a generosidade, a solidariedade com o povo brasileiro, a atitude de colocar a vida em risco, de sacrificar a própria vida em favor dos ideais da democracia e do socialismo.
É por tudo isso que peço nesse momento dos 30 anos de anistia que essa geração seja lembrada.
Os nossos mortos regaram com sangue o caminho que nos trouxe a esse extraordinário momento de liberdades que vivemos no País.
Muito obrigado.
deputado Emiliano José (PT-BA)