“A história ainda vai dizer quanto de violência, quanto de preconceito contra a mulher, tem nesse processo de impeachment golpista. Nós sabemos o quanto existe de misoginia, de machismo em algumas visões. Mas nós vamos reafirmar a nossa perspectiva de gênero. Nós sabemos que um dos componentes desse processo tem como base o fato de eu ser a primeira presidenta eleita pelo voto popular do Brasil”, disse Dilma Rousseff, em tom profético durante seu pronunciamento na abertura da 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em Brasília, pouco antes do Senado afastá-la da presidência.
O processo violento de afastamento da primeira mulher da presidência sem o cometimento de nenhum tipo de crime desnuda apenas uma das faces do caráter misógino do golpe, o qual tem raízes muito mais profundas, uma vez que ele foi construído nas trevas, maquinado com setores fundamentalistas que atacam diuturnamente a perspectiva de empoderamento feminino, de autonomia das mulheres.
Basta olhar para a composição do governo Temer. As mulheres foram excluídas dos principais postos de poder da República com a justificativa de que a montagem do ministério estava fundamentada na “competência” e não em questões de gênero e raça, demonstrando que sob o prisma dos golpistas, mulheres e negros não são competentes para ocupar espaços de poder.
O resultado desse pensamento é a composição de um ministério retrógrado com pouquíssima representatividade, ocupado basicamente por homens, brancos, ricos e idosos. A cara do governo golpista reflete exatamente a conta que teve de ser paga pelo pacto oligárquico das bengalas, cartolas e casacas.
Temer ignora princípios basilares de qualquer sociedade democrática. Seu ministério é um atentado contra a diversidade e a multiculturalidade, características fundantes da formação social, cultural e histórica brasileira. Está na contramão da própria sociedade, majoritariamente formada por mulheres e negros.
Um dos primeiros atos de Temer foi rebaixar o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, ao status de Secretaria de Política para as Mulheres. Para piorar esse quadro nomeou para ocupar a pasta a ex-deputada federal evangélica, Fátima Pelaes, que foi presidente da Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida na Câmara Federal. Pelaes já se manifestou reiteradas vezes contra a descriminalização do aborto, e é contrária, inclusive, à interrupção da gravidez em caso de estupro, circunstância prevista na legislação brasileira desde a década de 80.
A indicação de Pelaes, objeto de mais uma polêmica envolvendo o errático governo Temer, foi feita logo após caso de estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro, fato que chocou o Brasil e o mundo. Devido à forte pressão exercida pelas mulheres nas ruas, as quais têm se mobilizado fortemente contra a cultura do estupro em todo o País, Pelaes recuou e, em nota, afirmou que vítimas de violência sexual devem ter apoio do Estado caso queiram abortar.
Enquanto deputada, Pelaes dizia “acreditar que a família é um projeto de Deus e que seu mandato era um instrumento para glorificar o nome do Senhor na Câmara Federal”. Aliás, ela não é a única integrante do governo golpista a ignorar a laicidade do Estado e a colocar os seus preceitos religiosos como condutores de suas funções públicas, mesmo quando eles ferem à lei e à Constituição, a qual assegura a liberdade de credo e de não credo.
A incapacidade do governo golpista de tratar a temática de gênero não para por aí e a lista de retrocessos tem crescido a cada dia. Exemplo maior dessa inabilidade foi exatamente a resposta que o governo apresentou para lidar com a violência contra a mulher no País, após ampla repercussão do caso de estupro coletivo no Rio.
A resposta do governo Temer já nasce fadada ao fracasso, pois trata a questão da violência contra a mulher como um problema individual do agressor, descontextualiza o crime de toda uma cultura machista e sexista que precisa ser enfrentada.
Por isso, as medidas apresentadas reduzem a violência contra a mulher a assunto de polícia e são excessivamente centradas numa abordagem policialesca para enfrentar a problemática. Temer e seu ministro da Justiça não apresentaram em nenhum momento estratégias de combate à cultura do estupro, a questão da desigualdade entre homens e mulheres, do machismo, da importância de tratar a perspectiva de gênero como transversal à execução de todas as políticas públicas de Estado.
Somado a todo esse quadro horrendo de ataque aos direitos das mulheres, dois episódios demonstram o simbolismo e a fortíssima caracterização do golpe como um processo eivado de machismo: o fato do Ministro da Educação (MEC) ter recebido o ator Alexandre Frota, estuprador confesso, em seu gabinete; e a determinação de suspender o uso da palavra “Presidenta” em todo o noticiário da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Além do escárnio de uma figura como Frota se tornar “consultor” do MEC, cabe alertar para o fato de que ele foi ao ministério apresentar um projeto intitulado “Escola sem Partido”, que pretende rotular a discussão sobre o feminismo e a homofobia como doutrinação ideológica e imposição da “ideologia de gênero” nas escolas.
Devemos combater essa proposta com toda veemência, pois além de tratar o machismo, as relações assimétricas entre homens e mulheres, a violência e o preconceito como atitudes pretensamente neutras e naturais, ele objetiva silenciar as vozes de setores oprimidos da sociedade, criar um ambiente de conformismo e aceitação irrefletida de injustiças nos espaços de ensino e aprendizado, quando estes deveriam ser pautados por uma perspectiva crítica e de questionamento da realidade.
A determinação de retirar a palavra “Presidenta” do noticiário da EBC também não pode ser considerada banal, pois as palavras não são vazias, ao contrário, são carregadas de significado. A negação da letra A nada mais é que a coroação de todo esse movimento de negação dos signos de visibilidade de gênero, da dificuldade que os golpistas têm de aceitar o fato do Brasil ter eleito uma mulher para presidir o mais alto posto de poder da República.
O momento é de resistência e luta contra os retrocessos. De forma absolutamente magistral Simone de Beauvior já nos alertava para o caráter cambiante das conquistas femininas, dos fluxos e refluxos impostos por determinados momentos históricos de regressão social, política e cultural. Em uma frase ela resumiu, ainda no século passado, o momento que estamos vivenciando agora no Brasil.
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
“Por todas elas” reiteramos que machistas, golpistas e fascistas não passarão!
*Erika Kokay é deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores do Distrito Federal
Artigo publicado originalmente no Portal Fórum em 02 de junho de 2016
Assessoria Parlamentar
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