Em texto publicado originalmente em Carta Capital, Lindbergh Farias e Marcelo Zero apontam a conexão histórica entre o 8 de Janeiro e o atentado frustrado no Riocentro, em 1981;
Era uma tranquila e agradável noite carioca. Naquele 30 de abril de 1981, acontecia no Riocentro, na Barra da Tijuca, um show em comemoração ao Dia do Trabalho, reunindo grandes nomes da música brasileira.
Cerca de 20 mil pessoas, a grande maioria jovens, esperavam pacificamente pelo show.
Entretanto, pouco depois das 21h, ocorreu uma súbita explosão no estacionamento do Riocentro.
Uma bomba explodira literalmente no colo do sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, o qual estava dentro de um carro, um Puma branco, matando-o instantaneamente. O outro ocupante do veículo, o capitão Wilson Dias Machado, ficou gravemente ferido.
Essa explosão acidental frustrou um atentado que deveria ter tido consequências gravíssimas, com a possível morte de centenas de pessoas.
O terrível atentado, inteiramente planejado e executado por militares, seria atribuído a militantes de esquerda. O objetivo maior era retardar ou impedir a abertura política que estava em andamento e justificar uma repressão maior às forças políticas democráticas.
O frustrado atentado do Riocentro não foi um ato isolado.
Na realidade, ele faz parte de uma série de atentados terroristas, cerca de 70, que foram cometidos, entre 1978 e 1987, pela chamada “linha-dura” das Forças Armadas, setor de extrema-direita que se sempre se opôs à volta da democracia no Brasil.
Apenas entre 1979 e 1981, ao menos quarenta explosões contra bancas de jornal foram realizadas por militares.
Os ataques terroristas com bombas também atingiram instituições vitais para a democracia, como a Ordem dos Advogados do Brasil (que resultou na morte da funcionária Lyda Monteiro), a Associação Brasileira de Imprensa e a Casa do Jornalista.
Livrarias, universidades e as sedes de jornais como O Estado de S. Paulo, Hora do Povo, Em Tempo (Belo Horizonte) e O Pasquim também foram objeto de atentados.
Obviamente, todos esses atentados não foram investigados e seus perpetradores nunca sofreram quaisquer consequências jurídicas.
Mesmo o atentado do Riocentro, que foi planejado para ser o maior ataque terrorista da história do País, ficou impune.
Houve várias investigações que não deram em nada.
A primeira, uma “investigação” conduzida pelo próprio Exército, uma farsa ridícula, “concluiu” que o atentado fora feito por organizações de esquerda.
Na última, feita em 2014, foram formalmente acusados de crimes relacionados ao atentado os generais Newton Cruz, Otávio Aguiar de Medeiros, Job Lorena de Sant’Anna e Edson Sá Rocha, e os coronéis Freddie Perdigão Pereira e Wilson Machado, entre vários outros. Mas o Tribunal Regional Federal da 2ª Região decidiu pelo trancamento da ação penal.
Essa impunidade, em relação ao terrorismo de Estado da extrema-direita brasileira, vem de longe.
Em 1968, o brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, chefe de gabinete do então ministro da Aeronáutica, Márcio de Sousa e Mello, concebeu um plano que poderia ter redundado em verdadeiro genocídio.
Segundo o plano, tudo começaria com detonação de bombas em sedes de multinacionais e na embaixada dos Estados Unidos.
Na sequência, haveria a explosão da represa de Ribeirão das Lajes e do Gasômetro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, precisamente às 18h, horário de grande movimento, para produzir o maior número de mortes.
Tais explosões tinham o potencial de ocasionar até 100 mil mortes, conforme algumas avaliações.
Obviamente, tudo seria atribuído às esquerdas.
A grande comoção causada pelos gigantescos atentados justificaria um grande enrijecimento da ditadura e a eliminação física de opositores, como Juscelino Kubitschek e o arcebispo Dom Hélder Câmara, os quais seriam sequestrados e atirados, desde aviões, em alto-mar.
O plano só não foi à frente porque foi denunciado pelo capitão do Para-Sar, unidade de paraquedistas, Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o lendário “Sérgio Macaco”.
O único punido no episódio foi o bravo capitão, que perdeu cargo e patente pelo famigerado AI-5, instrumento jurídico de autêntico terrorismo de Estado.
Assim, o terrorismo surgiu, no Brasil como terrorismo de Estado, estreitamente vinculado aos militares da “linha-dura”, visceralmente antidemocráticos.
Como bem afirmou o jornalista Rudolfo Lago, em artigo publicado em dezembro de 2022, “o terrorismo no Brasil sempre foi coisa da extrema-direita”.
Pois bem, a extrema-direita e a “linha-dura” continuam vivas.
Com a eleição de Bolsonaro, elas voltaram a exibir suas garras violentas e antidemocráticas.
Com efeito, Bolsonaro nada mais é que um expoente da “linha-dura” que conseguiu chegar ao poder, 37 anos após o atentado do Riocentro.
O bolsonarismo, como foi bem descrito no voto da relatora Eliziane Gama, da CPMI do 8 de Janeiro, é, na verdade, uma facção de extrema-direita brasileira, que existe já há algum tempo, com métodos violentos e ações terroristas.
Há uma conexão histórica evidente.
Bolsonaro, um confesso admirador da ditadura e de grandes expoentes da “linha-dura”, como o torturador Brilhante Ustra, é um descendente político direto do general Sylvio Frota, o antigo líder das facções mais extremadas das Forças Armadas.
Um dos seus mais estreitos colaboradores, o general Augusto Heleno, foi ajudante de ordens de Frota.
O DNA político do bolsonarismo é exatamente o mesmo da “linha-dura” militar. Os unem o absoluto desprezo pela democracia, a aversão aos direitos humanos, o ódio à esquerda e a todo progressismo social, a misoginia, a homofobia, o racismo, a intolerância em relação a tudo que for “diferente”. Os une o pseudopatriotismo, pois quem é antidemocrático não é, e nunca será, verdadeiro patriota.
Como a antiga “linha-dura”, o bolsonarismo tem pendor para a violência, para a destruição dos adversários políticos, para a mentira e o engano.
O próprio Bolsonaro foi acusado de participar de um plano para explodir bombas em quarteis do Exército, como forma de protesto contra os baixos salários.
Os setores mais extremados desses descendentes políticos da “linha-dura”, “honrando” a tradição terrorista, colocaram uma bomba no Aeroporto de Brasília, perto do armazenamento de combustíveis. Se tivesse explodido, poderia ter provocado uma carnificina.
Em 12 de dezembro de 2022, esses mesmos setores queimaram ônibus e carros em Brasília, exatamente como fizeram agora milicianos do Rio de Janeiro. Tentaram até mesmo invadir a sede da Polícia Federal. Tocaram o terror nas estradas do Brasil.
Em 8 de Janeiro de 2023, em verdadeiros atos terroristas, invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF, as grandes instituições da democracia brasileira. Destruíram tudo. O plenário do STF ficou parecendo Gaza depois de bombardeios.
As bombas do Riocentro não explodiram. Contudo, o 8 de Janeiro foi a maior explosão que ocorreu contra as instituições democráticas do Brasil, após a ditadura.
Ela não explodiu no colo de um sargento. Explodiu bem no colo da nossa democracia, quase quarenta e dois anos depois.
Para cúmulo do cinismo, outra característica herdada da “linha-dura”, tentaram, de novo, colocar a culpa nas esquerdas, no governo Lula, na própria vítima.
O 8 de Janeiro, como se disse, não foi um domingo no parque. Como o 30 de abril de 1981, foi o dia da vergonha, foi a data da infâmia. Um show de horrores que manchou nossa imagem e provocou indignação mundial.
Tentaram destruir o Brasil e suas instituições, não apenas prédios públicos. Atacaram a soberania democrática. Feriram o País.
Sobrevivemos.
Mas a “linha-dura” continua ativa. Só mudou de forma.
Portanto, não se pode transigir com os criminosos, com terroristas. Sejam quem forem, venham de onde vierem, as punições terão de ser exemplares e duras.
Se o 8 de Janeiro ficar impune, como o 30 de abril, a violência voltará para tentar destruir nossa democracia.
O preço da paz é a justiça.
“Linha-dura” nunca mais!
* Lindbergh Farias é deputado federal pelo PT do Rio de Janeiro e vice-líder da Maioria na Câmara
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em relações internacionais