Apesar de todas as conquistas democráticas, o Brasil convive ainda hoje com um instrumento utilizado pela ditadura para encobrir ações de extermínio praticadas contra “o inimigo”. Esse entulho autoritário se chama auto de resistência ou resistência seguida de morte, e vem legitimando o assassinato de milhares de jovens pobres da periferia, sobretudo negros.
Na prática, o auto de resistência funciona como álibi para acobertar execuções cometidas por agentes do Estado. Inquéritos relativos a ações policiais que resultam na morte de suspeitos raramente apuram o que de fato ocorreu. As investigações apresentam deficiências graves, entre elas a falta de oitiva de todos os envolvidos, a falha na busca por testemunhas desvinculadas da própria polícia e até a ausência de perícias básicas, como a análise da cena do crime.
O trágico resultado dessa omissão está resumido em nota pública — assinada por mais de 50 organizações e movimentos da sociedade civil — em apoio ao Projeto de Lei nº 4471/12, de minha autoria, em parceria com os deputados Fábio Trad, Protógenes Queiroz e Miro Teixeira. “Centenas de milhares de familiares seguiram (e seguem) a padecer com as mortes de seus entes queridos, as quais, decorrentes de ações policiais, não são, na maioria das vezes, investigadas”, destaca a nota.
Entre janeiro de 2010 e junho de 2012, apenas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, nada menos que 2.882 pessoas foram mortas em ações registradas como autos de resistência ou resistência seguida de morte — uma inaceitável média de mais de três execuções por dia.
De acordo com o Conselho Nacional de Juventude, a maior parcela desses crimes é praticada contra jovens pobres e negros. Estudos da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da Presidência da República, confirmam as estatísticas. Não por acaso, entre os signatários da nota pública em apoio ao PL nº 4471/12 figura o Comitê Contra o Genocídio da Juventude Negra.
Aprovado em três comissões da Câmara dos Deputados (de Constituição e Justiça, de Cidadania e de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado), o PL nº 4471/12 estabelece regras para a apuração de mortes e lesões corporais decorrentes das ações de agentes do Estado.
Pelo projeto de lei, os casos conhecidos como autos de resistência seguida de morte deverão ser investigados por meio da instauração de inquérito policial específico, de maneira semelhante ao que é previsto para os crimes praticados por cidadãos comuns. O objetivo é tornar mais efetiva a investigação, assegurando um levantamento pericial eficaz, por meio da preservação dos meios de prova em relação à perícia.
Além disso, o PL garante imediata comunicação da instauração do inquérito ao Ministério Público e à Defensoria Pública, ao órgão correcional correspondente e à Ouvidoria ou órgão análogo, onde houver, para controle da atividade policial. Temos certeza de que, quando esses procedimentos tornarem-se obrigatórios, os policiais passarão a observar os princípios básicos da missão da instituição, que são os de garantir a segurança da população e o respeito à lei, em vez de eleger inimigos e exterminá-los a sangue frio.
Longe de ser uma iniciativa contra a polícia, trata-se na verdade de uma medida que protege os bons policiais, ao não acobertar aqueles que cometem crimes em nome de suposto combate à delinquência. No início deste ano, após intensa mobilização da sociedade civil, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo extinguiu dos boletins de ocorrência o registro de auto de resistência e de resistência seguida de morte.
Ao mesmo tempo, determinou que, quando a ação policial resultar em feridos, os agentes deverão chamar uma equipe de resgate do Samu, em vez de tomar a iniciativa de remover as vítimas — que muitas vezes embarcam no camburão com lesões não letais e chegam mortas ao hospital. Com esses procedimentos, as mortes provocadas pela Polícia Militar paulista caíram 40% no estado. Isso confirma que, muitas vezes, o que é tratado como resistência seguida de morte não passa de pura e simples execução — e reafirma a urgência de aprovação do PL nº 4471/12.
(*) Paulo Teixeira é deputado federal (PT-SP)
(artigo publicado originalmente no Correio Braziliense, edição do dia 2 de outubro de 2013)