Mercado privado de vacinas seria um verdadeiro ‘salve-se quem puder’ – por Henrique Fontana

As maiores autoridades epidemiológicas do mundo apontam o Brasil como epicentro da pandemia do coronavírus. Na última semana, de cada três pessoas vitimadas pelo covid-19 no mundo, uma era brasileira. Como chegamos a este quadro dramático não é difícil de compreender: demora na compra de vacinas, atraso na elaboração de um plano nacional de imunização e sabotagem sistemática aos protocolos de prevenção, como uso da máscara e distanciamento social, que denunciam a profunda irresponsabilidade do governo federal no combate à pandemia.

Desde o início da propagação do coronavírus, o presidente Bolsonaro minimizou a gravidade do que estava acontecendo, através de declarações e de atitudes, apesar dos alertas da comunidade científica. Durante todo o tempo desdenhou o crescimento acelerado do número de vítimas, provocou aglomerações e, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde, gastou seu tempo e dinheiro público fazendo a propaganda descarada de um suposto tratamento precoce através da cloroquina, sua grande obsessão, e de outros produtos comprovadamente ineficazes.

Mais do que isso. Retardou ao máximo as providências para a aquisição de vacinas, deixando o país no fim da fila. Em agosto do ano passado, o Ministério da Saúde sequer respondeu à oferta da Pfizer para a compra de 70 milhões de doses da AstraZeneca, que chegariam no final de 2020. O Instituto Butantan ofereceu milhões de doses da CoronaVac ao governo em 30 de julho, 18 de agosto e 7 de outubro. O governo nunca se interessou. Em outubro, baseado em preconceitos ideológicos, desautorizou o ministro Eduardo Pazuello que então negociava a vinda de lotes da CoronaVac. Chegou a dizer que a pressa na compra de vacinas não se justificava.

Ainda em 2020, o ministro de Relações Exteriores do Governo Bolsonaro também atuou para barrar a adesão do Brasil ao Covax Facility, consórcio da OMS destinado a promover o acesso global a vacinas. Após pressão, o país acabou aceitando participar da aliança, mas optou por receber doses equivalentes para cobrir apenas 10% da população, quando poderia ter escolhido adquirir imunizantes para até 50% dos brasileiros. Aliás, durante a pandemia, Bolsonaro promoveu quatro trocas de ministros da Saúde, o que evidencia a gestão temerária do governo quanto ao combate ao coronavírus.

Desde o dia 17 de janeiro, quando iniciou a vacinação no Brasil, o total de doses aplicadas foi de 23.807.845, muito pouco para o tamanho da nossa população. Em pouco mais de dois meses e meio, apenas 3,25% da população recebeu as duas doses da vacina – ou seja, somente três em cada 100 brasileiros estão imunizados. Se considerarmos a previsão para abril, com doses suficientes para imunizar 12,5 milhões de pessoas, levaríamos 13 meses para vacinar os 162,8 milhões maiores de 18 anos. Com a escassez de doses e um ritmo absurdamente lento na vacinação, o Brasil tem sido um terreno fértil para a propagação de novas variantes do vírus cada vez mais letais e de níveis de contaminação mais acelerados, preocupando o mundo inteiro.

Neste quadro trágico no qual o governo Bolsonaro nos jogou, surge a proposta de permitir que as empresas privadas adquiram vacinas para imunizar seus diretores e funcionários – o projeto prevê, inclusive, isenção de impostos sobre essas compras. Justificam os liberais de que as empresas interessadas estariam contribuindo com o país, ao trazer mais vacinas para imunizar a população. Essa falácia pretensamente patriótica é fácil de ser desmontada. O maior argumento para combatê-la é que os lugares onde esses empresários comprariam suas vacinas são os mesmos onde os governos buscam os imunizantes. As fontes são restritas. As vacinas que as empresas comprariam para seu próprio consumo fariam falta ao sistema público de saúde, responsável pela vacinação universal.

O Brasil demorou para comprar vacina e terá uma enorme dificuldade de recuperar o tempo perdido. Permitir que a fila da vacina passe a se orientar pelo poder econômico e não por critérios epidemiológicos e sanitários não vai ajudar e sim atrapalhar o processo de vacinação em curso. Seria colocar o país numa espécie de “salve-se quem puder”. No mundo inteiro, os governos estão empenhados em fortalecer seus programas públicos de vacinação com base em protocolos justos que dão prioridade às populações com maior risco de morte e de contaminação.

A autorização do mercado privado de vacinas dividiria o país em dois: o Brasil dos privilegiados que têm acesso aos grupos econômicos e o Brasil dos desamparados, cujo acesso à vacinação seria ainda mais retardado. Além disso, abriria espaço para todo o tipo de fraudes e privilégios, cuja mostra desastrada tivemos há poucos dias, quando um grupo de empresários tentou furar a fila e acabou recebendo soro fisiológico em vez de imunizantes.

Somente o SUS pode assegurar um processo público e universal de vacinação. Mesmo com a escassez decorrente dos atrasos e dos boicotes, os profissionais da rede pública têm respondido a esse gigantesco desafio, e seu trabalho tem sido reconhecido pela população.

A tragédia brasileira do coronavírus tem um grande responsável. Ele se chama Jair Messias Bolsonaro que, através de sua política genocida, tem levado à morte centenas de milhares de pessoas, muitas das quais estariam vivas caso o Brasil tivesse um governo preocupado com a saúde da população e com a vida dos brasileiros.

Henrique Fontana é deputado federal (PT-RS) e Médico 

Artigo publicado originalmente no Portal Fórum

 

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