Poucos dias após o início da vacinação, os brasileiros já sofrem com o descaso e a imprevidência do Governo Federal, mergulhado em um atoladouro negacionista desde o início da pandemia. Em vários estados ela foi interrompida antes que 3% da população do país tivesse recebido a primeira dose, antecipando um quadro que deve se agravar nas próximas semanas quando se esgotarem os parcos estoques do Ministério da Saúde. Com base em dados como o número de casos e mortes, oferta de testes e medidas adotadas para frear a pandemia em um universo de 98 países, o respeitado LowyInstitute, da Austrália, colocou o Brasil em último lugar no ranking mundial de gestão da pandemia.
O histórico do governo brasileiro em relação à pandemia é um inventário macabro em que se misturam irresponsabilidade, incompetência, desleixo e desprezo pela vida humana. Neste cenário, o presidente Bolsonaro emerge como a figura central do descalabro, tanto por suas declarações, quanto pelas atitudes que protagonizou. Desde o início, enquanto o mundo inteiro assustava-se com a descoberta e a rápida disseminação do novo coronavírus, Bolsonaro dizia: “A questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo.”
No final de abril, quando o país registrou cinco mil mortes, o presidente declarou: “E daí? Lamento, quer que faça o quê? Eu sou ‘messias’, mas eu não faço milagre”. Ninguém queria milagre e sim uma postura governamental responsável e adequada à tragédia que se agravava.
Mais adiante, demite o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por discordância sobre o uso da cloroquina que Bolsonaro tentava impor, mesmo diante das reiteradas manifestações da Organização Mundial da Saúde questionando sua eficácia no tratamento da doença. A cloroquina tornou-se um cavalo de batalha do presidente que prescrevia seu uso em entrevistas e lives, contra a opinião do mundo científico. A tal ponto que o substituto de Mandetta, o médico Nelson Teich, pediu demissão com apenas 29 dias no cargo: “Não vou manchar a minha história por causa da cloroquina”. No lugar dele, Bolsonaro nomeou o general Eduardo Pazuello, o qual, em solenidade oficial, antes de assumir o cargo, afirmou que “nem sabia o que era o SUS”. O novo ministro promoveu uma militarização nunca vista no Ministério da Saúde. Neste interim, foi divulgado que o Exército pagava 167% a mais pelo principal insumo da cloroquina, com a seguinte justificativa: “produzir esperança para corações aflitos”.
Em junho, quando o número de mortes ultrapassou 40 mil e a ocupação de leitos chegava ao esgotamento, Bolsonaro incitou seus seguidores a invadir hospitais e filmar, alegando que os números de doentes e de ocupação hospitalar estavam inflacionados. O governo passou a divulgar dados sobre a covid-19 somente após as 22horas, para evitar que os números fossem divulgados nos noticiários noturnos de TV.
Além de provocar aglomerações de apoiadores e aparecer ostensivamente sem máscara, Bolsonaro vetou a sua obrigatoriedade em locais como comércios, indústrias, templos religiosos, escolas e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas. Também vetou a obrigação dos estabelecimentos de fornecer máscaras a seus funcionários e de afixar cartazes informativos sobre a forma correta do seu uso e de proteção individual nos estabelecimentos prisionais e de cumprimento de medidas socioeducativas.
No final de julho, quando mais de 70 mil brasileiros haviam morrido em função da covid, ele declara: “Lamento as mortes. Morre gente todo dia, de uma série de causas. É a vida.” Disse isso em meio a uma aglomeração em Bagé.
Em agosto, a companhia farmacêutica Pfizer ofereceu ao governo brasileiro 70 milhões de doses de sua vacina já testada em mais de dez países, mas a proposta foi ignorada. “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, foi o comentário de Bolsonaro, coerente com a postura do governo brasileiro, ao aderir ao CovaxFacility, um consórcio da OMS destinado a promover o acesso global a vacinas. Oprograma oferecia a possibilidade de que os governos escolhessem a modalidade de solicitação dos imunizantes, prevendo a cobertura de 10% a 50% da população de cada país. O Brasil optou por solicitar a menor taxa de cobertura permitida, apenas 10%.
A pandemia não parava de crescer. No dia 11 de setembro, quando o país lamentavamais de131 mil mortos, Bolsonaro declara em um evento na Bahia: “Estamos praticamente vencendo a pandemia. O governo fez tudo para que os efeitos negativos da mesma fossem minimizados, ajudando prefeitos e governadores com necessidades na saúde”.
No dia 19 de dezembro, quando as mortes chegavam a 180 mil, ele batia na mesma tecla: “A pandemia, realmente, está chegando ao fim. Temos uma pequena ascensão, agora, que chama de pequeno repique que pode acontecer, mas a pressa da vacina não se justifica”. Neste momento, Bolsonaro está empenhado em uma disputa absurda com o Governo de São Paulo, que havia tomado a iniciativa de adquirir vacinas Coronavac produzidas pelo instituto Butantã.
Em resposta a um questionamento do Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Saúde apresenta o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, questionado pela própria equipe técnica do Ministério. O governo, porém, ainda não tem vacina a oferecer nem cronograma confiável de vacinação. Diz o ministro Luís Roberto Barroso, do STF: “Impressiona que, após quase 10 meses de pandemia, não tenha a União logrado o mínimo: oferecer um plano com seus elementos essenciais, situação que segue expondo a risco a vida e a saúde dos povos indígenas”.
A falta de oxigênio verificada em Manaus, que se espalhou por outras cidades amazônicas, acaba por evidenciar de maneira dramática a irresponsabilidade, a incompetência e falta de ação do governo. Diante do quadro desesperador, com pacientes morrendo asfixiados na rede hospitalar, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, declara: “O que você vai fazer? Nada. Você e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio para ser distribuído”. No entanto, é obrigado a admitir que tinha informações de que faltaria oxigênio sete dias antes do colapso.
O Brasil entrou tarde no processo de aquisição de vacinas. Enquanto outros países agilizavam e diversificavam seus contatos com as farmacêuticas, o governo brasileiro perdia um tempo precioso que agora começa a cobrar a conta, com a falta de vacinas, o que levou a Confederação Nacional dos Municípios a pedir demissão de Pazuello.
O quadro aqui apresentado configura uma sequência de crimes de responsabilidade que caracteriza uma postura genocida por parte de um governo que minimizou uma doença global, incentivou a rebelião contra medidas de proteção social, desprezou a ciência e expôs a população à doença e à morte. Esse é o retrato do Governo Bolsonaro e estas são as razões mais fortes, entre outras tantas, para se exigir seu afastamento do cargo que reiteradamente desonra.
*Henrique Fontana é deputado federal (PT-RS)
Artigo publicado originalmente no GGN