Em seminário, Celso Amorim afirma que “soberania não rima com tirania, rima com democracia”

O ex-chanceler brasileiro Celso Amorim (2003-2011) alertou na quarta-feira (4), em seminário sobre soberania nacional realizado na Câmara dos Deputados, que no Brasil atual há um uso totalmente errado e falso do conceito de soberania, “que é a ideia de que ser soberano é ter liberdade para fazer o que bem intende e desrespeitar as normas internacionais”. Para o chancelar, nesse episódio da Amazônia isso ficou claro. “É como se o Brasil não estivesse inserido no mundo”, criticou.

Segundo Celso Amorim, o governo Bolsonaro desconhece as normas trabalhistas, desconhece as normas sobre o clima, sobre direitos humanos. “Hoje, inclusive, teve uma ofensa gravíssima ao pai da presidenta Michele Bachelet, que morreu torturado no Chile, e o fato foi objeto de uma ironia totalmente descabida”, lamentou. Ele lembrou ainda das ofensas de Bolsonaro à primeira-dama da França. “São coisas que jamais se viram, não é só na diplomacia brasileira, eu nunca vi em nenhuma relação no mundo uma atitude pessoal ofensiva como eu vejo agora. Essas ofensas pessoais, espelham um desejo muito marcado de não seguir as normas internacionais”, alertou.

O ex-ministro dos governos do PT disse ainda que é necessária muita atenção para não permitir que essa “bandeira que é nossa, dos democratas, seja arrebatada pelos projetos de tiranos”. Para Celso Amorim, a soberania não rima com tirania, rima com democracia. “Isso se espelha em certas restruturações a ideia de que soberania é a liberdade de o país fazer o que bem entende independentemente das regras internacionais. Então, se eles querem acabar com as normais trabalhistas – e se isso vai contra as convenções da OIT – é em nome da soberania, se os direitos humanos são violados e o governo não quer aceitar – é em nome da soberania. Se quer desrespeitar as normais internacionais sobre o clima, se faz isso também em nome da soberania. Nós temos que estar atentos e sermos capazes de rechaçar essa falsa visão de soberania”, defendeu.

Soberania, ensinou o chanceler, é a defesa do interesse brasileiro, das nossas riquezas e a defesa da ciência brasileira, da nossa cultura brasileira, da nossa capacidade de ter uma política externa independente em que a gente se relaciona com quem a gente acha que deve, isso é a verdadeira soberania”, enfatizou.

Decisão da ONU

O desvirtuamento do conceito de soberania, segundo Celso Amorim, começou antes mesmo do governo Bolsonaro. Ele citou o episódio de quando a ONU concedeu uma liminar garantindo o direito de o ex-presidente Lula se candidatar, mesmo sendo preso político, enquanto não se julgava em definitivo a situação. “Isso foi recusado, e para minha surpresa um outro ministro, que não tinha nada a ver com o caso, disse que nós não deveríamos nos curvar à ONU, nos curvar à ONU? A ONU somos nós, ela foi criada por nós, não pela esquerda, não pelo PT, a ONU é parte de uma normatividade internacional que existe para nos proteger”, enfatizou.

Na avaliação do chanceler, a ONU tem defeitos, mas o trabalho é para reformar não é negar. “É importante ter clareza que a nossa soberania é a defesa do interesse nacional, baseado no governo democrático e na discussão racional”. Celso Amorim afirmou ainda que a soberania não dá direito de torturar, não dá direito de destruir a Amazônia, não dá direito de eliminar convenções internacionais sobre o trabalho.

Amazônia

Celso Amorim enfatizou que a questão da Amazônia é uma responsabilidade nacional, mas que esse é um tema que interessa a todo mundo. “Nós não podemos desconhecer isso. Eu sou totalmente contra haver um estatuto internacional da Amazônia, mas quem puxou esse debate, os desmandos são de tal ordem, as declarações são de tal ordem, a impunidade expressa de tal ordem que esse tema voltou a ficar na ordem do dia. Os brasileiros não estão conseguindo, não querem o que é pior cuidar da Amazônia. Então esse tema da internacionalização volta. Não sou a favor, sou contra, acho que o Brasil tem que ter as suas medidas, mas tem que ser capaz de assumir a responsabilidade”, argumentou.

Subordinação aos EUA

O ex-chanceler criticou também a subordinação total do governo Bolsonaro aos Estados Unidos. “Nunca vi uma submissão tão explicita a Washington como há hoje. Houve um embaixador no governo Castelo Branco que chegou a dizer que tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, mas foi abstrato, esse governo não, tem feito isso de uma maneira concreta e na defesa de uma posição totalmente subalterna”, criticou.

Ele também criticou as privatizações em curso e alertou que na realidade está havendo uma desnacionalização, “que é a entrega do patrimônio brasileiro” a mãos estrangeiras e muitas vezes até para estatais estrangeiras. “Toda essa situação é extremamente preocupante quando nós vemos dia a dia o patrimônio brasileiro sendo entregue, a relação privilegiada para eles com os Estados Unidos ser aprofundada”.

Segundo Celso Amorim, eles (governo Bolsonaro) estão entrando no Brasil sem dar um tiro. “A força do Estado profundo norte-americano, do capital norte-americano e de outros países no campo financeiro, está se valendo da própria elite brasileira para fazer isso. Então nossas coisas estão sendo destruídas no dia a dia, a ocupação, perdas de emprego, tudo isso de uma maneira menos obvia, menos ostensiva do que numa guerra, mas que conta exatamente com os mesmos efeitos”, criticou.

Vânia Rodrigues

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