No momento em que se celebra o Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher, vivemos uma contradição. O Brasil elegeu a primeira mulher Presidenta da República, Dilma Rousseff, mas mantém altos índices de violência contra a mulher.
Esse fenômeno encontra explicação na nossa história e remete a soluções de curto, médio e longo prazo, do ponto de vista das políticas públicas.
País de tradição patriarcal e patrimonialista, não diferente da absoluta maioria dos países do mundo, o Brasil tem como uma das marcas de sua história a vulnerabilização de segmentos. A escravidão institucionalizada nunca libertou totalmente o povo negro do racismo. Idosos, pobres, índios, homossexuais e mulheres historicamente foram e ainda hoje são vítimas de preconceito.
Na luta de gênero, no campo pessoal, mesmo com avanços consideráveis dos últimos anos, persistem a baixa auto-estima das mulheres, a submissão, a vitimização, a naturalização do trabalho doméstico como atributo especificamente feminino e a quase sempre aceitação de um status de inferioridade. Nos diversos espaços públicos (mercado de trabalho, educação, saúde, meios de comunicação social, instâncias de poder e religiões, dentre outros), as mulheres ainda são tratadas de forma discriminada e estereotipada. A violência doméstica, sexual ou de gênero ainda são legitimadas como ‘normais’ por considerável parcela da sociedade.
Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam a violência doméstica como principal causa de lesões em mulheres de 15 a 44 anos no mundo, sendo que 68,8% dos homicídios ocorrem dentro de casa e são praticados pelos cônjuges. O quadro, no Brasil, também é alarmante. Segundo pesquisa realizada pelo Ibope, solicitada pelo Instituto Patrícia Galvão, em 2006, para 55% da população a violência é um dos três principais problemas que afligem as mulheres e 51% dos entrevistados declararam conhecer ao menos uma mulher que já foi agredida pelo seu companheiro. Pesquisa da fundação Perseu Abramo, de 2001, revela que 43% das mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica e a cada 25 segundos, uma mulher é espancada no Brasil. A condição das mulheres goianas não é diferente da realidade nacional. Segundo dados de 2010 do Instituto Sangari, Goiás tem a 12ª posição nas estatísticas de violência contra a mulher.
A violência contra as mulheres, portanto, “é um drama complexo e muito mais freqüente no Brasil do que se imagina”, como expressa a ministra Eleonora Menicucci.
É nesse contexto que refletimos sobre a passagem de mais um Dia da Não Violência Contra a Mulher. A data, instituída em 1999 pela ONU, é celebrada em todo o mundo no dia 25 de novembro. O dia foi escolhido para homenagear as irmãs Mirabal (Pátria, Minerva e Maria Teresa), assassinadas pela ditadura Trujillo na República Dominicana. Desde então, inúmeros países realizam eventos para lembrar que, diariamente, meninas, jovens e adultas são vítimas de toda sorte de violência.
Ciente desse cenário, o governo brasileiro, em parceria com estados, municípios, Poder Judiciário, Poder Legislativo e organizações da sociedade civil trabalha para reparar essa dívida histórica e atua para prevenir e enfrentar todas as formas de violência contra as mulheres. Uma ação do Executivo Federal é o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, lançado em 2007 pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. O pacto visa a reduzir os índices de violência contra as mulheres, promover uma mudança cultural a partir da disseminação de atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito às diversidades de gênero e de valorização da paz, e garantir e proteger os direitos das mulheres em situação de violência, considerando as questões raciais, étnicas, geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e regional.
Na prática, o Pacto estabeleceu investimentos para desenvolver políticas públicas amplas e articuladas, direcionadas, prioritariamente, às mulheres rurais, negras e indígenas em situação de violência, em função da dupla ou tripla discriminação a que estão submetidas e em virtude de sua maior vulnerabilidade social. Os recursos têm sido investidos na implantação dos Sistemas Estaduais de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, na instalação de Centros de Referência, com atendimento jurídico e psico-social às mulheres vítimas de violência e discriminação, e de Núcleos Especializados de Atendimento às Mulheres, além da construção de Casas de Abrigamento e realização de campanhas sócio-educativas e de apoio na estruturação das novas Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres – DEAMs. O Pacto prevê ainda ações em diferentes esferas da vida social: educação, trabalho, saúde, segurança pública, assistência social, entre outras.
No âmbito da segurança pública, em Goiás, três convênios firmados pela Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) com a Secretaria de Políticas para as Mulheres e Promoção da Igualdade Racial de Goiás (Semira) resultaram, em outubro, na entrega de 35 veículos para a rede de enfrentamento à violência contra a mulher no Estado. Os repasses da SPM, com esses três convênios, totalizam R$ 8,4 milhões, beneficiando 28 municípios goianos. Vinte e nove viaturas foram entregues às Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) e aos Núcleos Especializados de Atendimento à Mulher (NEAMs). Os recursos financeiros e os veículos têm como objetivo agilizar e qualificar o atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Outro marco institucional da luta contra a violência à mulher, é a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). A lei prevê que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva decretada, aumentou a pena máxima de um para três anos de detenção e acabou com o pagamento de cestas básicas como forma de fiança. Resposta positiva do poder público contra a impunidade é a campanha “Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha – A lei é mais forte”, que objetiva dar celeridade aos julgamentos dos casos e mobilizar a sociedade brasileira para o enfrentamento da violência contra as mulheres. A ação é desenvolvida em parceria por vários ministérios, Poder Judiciário, Ministério Público e Defensorias. Apesar de atitudes alvissareiras como essas citadas, passados seis anos de sua vigência, posso afirmar que a Lei Maria da Penha está longe de ser solução para a violência contra a mulher. Isto porque em parte dos estados a rede de proteção às mulheres vítimas de violência ainda é frágil. Alguns recebem os recursos, mas não os têm investindo conforme pactuado.
Em algumas regiões, o sentimento é de “terra sem lei”. Caso do Entorno do Distrito Federal, onde há o total descumprimento da Lei Maria da Penha. Em outubro, em diligências da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, da qual sou membro, constatamos: não há prevenção, falta assistência ou, quando há, é precária. A mulher moradora da Região que sofre violência doméstica passa por uma verdadeira via crucis para fazer a denúncia: ir à delegacia, depois ao IML para fazer o exame de corpo delito, voltar à delegacia e, posteriormente, ainda ter que acompanhar o processo no Judiciário. Atualmente, há pouquíssimas delegacias especializadas, redes de apoio e casas abrigo. Faltam juizados preparados para o integral atendimento à mulher, que fica à mercê da própria sorte e não é respeitada como vítima. Também falta estrutura física e humana para o trabalho dos poderes constituídos. Não há polícia e faltam condições adequadas ao Poder Judiciário para dar andamento nos inquéritos. Essa incapacidade do Estado em cumprir a lei deixa a mulher que sofre violência inerte e com medo. Confia na Lei Maria da Penha, mas sente-se acuada diante da sua ineficácia.
A aprovação, no dia 21 de outubro, pela Câmara dos Deputados, com o meu voto favorável, do Projeto de Lei Complementar 114/11 que regulamenta a autonomia financeira e orçamentária das defensorias públicas dos estados, gera boas perspectivas. As defensorias são importante instrumento de democratização do acesso gratuito à Justiça pela população desprovida de recursos. Do mesmo modo, é extremamente positiva a aprovação em primeiro turno, nessa semana, da Proposta de Emenda Constitucional 478/10, que amplia os direitos trabalhistas de domésticas, babás, cozinheiras e outros trabalhadores em residências. 90% desse universo é composto de mulheres.
Outro importante serviço é a Central de Atendimento às Mulheres (Ligue 180), da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), que já recebeu quase 3 milhões de denúncias desde a promulgação da Lei Maria da Penha. Somente este ano, foram 561.298 atendimentos entre janeiro e setembro. Desse total, 68.396 foram denúncias de violência, majoritariamente física (38.535). É importante salientar que, de acordo com a SPM, 27.638 mulheres relataram sofrê-la diariamente, e 19.723 se perceberam em risco de morte. Em 25.329 casos, os filhos presenciaram ataques à mãe. As agressões às mulheres, quando denunciadas, têm amparo legal para providências. Essas e outras medidas refletem o novo Brasil que, juntos, estamos construindo.
Mudar esse cenário exige políticas públicas específicas e transversais em todos os setores. Há que se modificar as relações sociais, práticas, discursos e a estrutura do Estado. É preciso avançar na redução da desigualdade entre os gêneros, garantindo autonomia cultural, política e econômica à mulher e o pleno cumprimento pelo Estado/Nação das leis que protegem a cidadania. Acima de tudo, é preciso avançar na cultura da paz, da não violência, da tolerância, da convivência.
Marina Sant’Anna é Deputada Federal (PT-GO), titular da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher do Congresso Nacional e coordenadora do Grupo de Trabalho de Legislação desta CPMI.
Artigo publicado na edição desta terça-feira, 27/11, página 5 do caderno Opinião Pública, do jornal Diário da Manhã