Não há dúvida sobre o fato que marcará para a história a passagem do dia 20 de novembro, em que se celebra a memória da morte de Zumbi dos Palmares, neste ano de 2019. De um lado, neste mês da Consciência Negra, a exposição “(Re)existir no Brasil: Trajetórias Negras Brasileiras”, com peças informativas e artísticas, organizada pela Curadoria da Câmara dos Deputados no túnel de acesso ao Plenário Ulysses Guimarães. Do outro, a reação de um parlamentar do PSL, um certo Coronel Tadeu, ao destruir uma tela com charge de 2013 do cartunista Latuff, a qual retrata a violência policial contra a juventude negra.
Cabe perguntar: o que naquela obra feriu a sensibilidade (?) do Coronel parlamentar? Onde doeu, Coronel? No país em que de cada 5 trabalhadores escravizados resgatados, 4 são negros, em pleno século XXI. No país em que os homens, jovens, negros como o retratado no desenho de Latuff, encabeçam qualquer lista de assassinados por policiais, ano após ano? Em que negros representam 43% das vítimas de homicídio?
Há uma característica inseparável do fascismo e do racismo, em qualquer época ou latitude: a paixão pela violência. A violência erigida como forma elementar das relações humanas. Das relações sociais. Na cabeça primitiva de um fascista/racista só é possível dirigir uma sociedade pela produção e reprodução massiva do medo. Como se comportará o autor do ato de vandalismo perpetrado no corredor da Câmara dos Deputados contra uma expressão da inteligência e da cultura? Como se comportará em outros ambientes com menor visibilidade? E no seu ambiente de trabalho, o quartel, com relação a seus subordinados?
Ao assistir à cena propagada em vídeo pelas redes sociais, não há como evitar a lembrança da frase histórica – e bestial! – do oficial franquista Milán Astray: “Abajo la inteligencia! Viva la muerte!” Metade da Espanha morreu durante a guerra civil. E depois de 40 anos de tirania se tornou um dos mais atrasados e obscurantistas países da Europa, até o retorno da democracia para reincorporá-la ao mundo civilizado.
Mas há um outro marco que fará este 20 de novembro ser lembrado. Tomada pela indignação, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ) subiu à tribuna. O discurso que proferiu não é uma burilada peça da retórica parlamentar, cada dia mais rara, convenhamos, no Legislativo brasileiro. Trata-se de uma explosão da verdade mais profunda represada nos corações dos cidadãos negros e negras que compõem 55,9% da sociedade brasileira.
É como se Benedita da Silva, naquele momento, incorporasse em sua voz toda a força e a indignação da resistência que enfrentou os 300 anos de escravidão. E todo o sofrimento dessa herança que se prolonga depois de mais de um século desde a Abolição, no silêncio das cozinhas, nas sombras dos quartos de despejo, nas áreas de serviço, onde se escondem os abusos quotidianos. Nas favelas, nos morros, nos mocambos.
É como se pela boca de Benedita da Silva falassem todas as domésticas, as mães que, como lembra no discurso, alimentaram com seu leite os filhos das sinhazinhas, o leite que faltou para seus próprios filhos! É como se pela Boca de Benedita da Silva se ouvisse a voz de Ágatha e de Marielle…
O gesto do vândalo serviu para chamar a atenção do País para a exposição “(Re)existir no Brasil: Trajetórias Negras Brasileiras” e para projetar a gigantesca estatura moral dessa mulher que honra o Parlamento brasileiro e sua raça de construtores, subjugados a ferro e fogo, sempre rebeldes, que imprimiu seu caráter de forma definitiva na fisionomia do Brasil.
Uma sugestão ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ): quando o senhor vier visitar a exposição para repor a tela de Latuff, não traga uma tela nova, reimpressa, perfeita. Recolha os pedaços da tela que foi destruída pela estupidez fascista e racista e, recomposta, a reintegre à exposição, para que fiquem à mostra as cicatrizes da barbárie.
*Paulo Pimenta é deputado Federal (PT-RS) e Líder do PT na Câmara dos Deputados